No dia em que embarquei de férias para Minas, pela manhã, um amigo me telefonou, dizendo: “Luís Camilo morreu essa madrugada”. Tomei o avião disposto a começar o longo e penoso trabalho de acomodar-me a essa mágoa nova.

Mais ou menos um mês antes, eu o visitara em sua casa e, ainda que ele estivesse pálido e magro, havia em seus gestos e nos seus pensamentos uma tal tranquilidade, os temas da conversa eram de tal maneira os seus temas preferidos, sobre as coisas da vida e do Brasil que meu sentimento era de que Luís Camilo havia estabelecido com a morte um acordo, um contrato, um modus vivendi. Parecia-me integrado e firme em sua fraqueza, próximo do fim, mas fora do alcance da morte.

Eu era menino em Belo Horizonte e morava nessa mesma casa cuja escada ia subindo no dia em que ele morreu. Ao lado, veio morar um homem de Itabira, Luís Camilo. Com a simpática falta de cerimônia das pessoas realmente boas, donas de um coração sem ressentimento, ele se tornou imediatamente conhecido na vizinhança, conversando com todos, sem o travo dessa reserva, tão mineira, que é timidez e cautela.

Seu filho mais velho era ainda menino de velocípede. Dava gosto ver doutor Luís Camilo horas inteiras na calçada brincando com Luís Felipe, rindo-se do que o garoto dizia ou fazia.

Sua vaguidão meio estabanada era um prazer para os meus oito anos. Quantas vezes ele entrou em minha casa, bem cedo, pela porta da cozinha, para ler o Minas Gerais, passava pela copa, pela sala, distraía-se a olhar uma planta em um vaso, e saía novamente pela porta da frente sem lembrar-se do que o levara até lá.

Lembro-me do dia em que se mudou para o Rio, comandando o encaixotamento da mobília, em uma garagem que não tinha automóvel, mas livros e revistas. Muitos anos depois, há pouco tempo, ele me explicaria com humor o motivo de sua mudança. 

Contou-me que tinha na sala de jantar uma mesa imensa, que atrapalhava o movimento da casa, e com a qual ele se chocava com frequência. A mesa, aos poucos, foi de tal modo crescendo dentro de sua sala e dentro de sua vida, que Belo Horizonte foi lhe ficando insuportável. Pois bem, dizia-me, quando já estava tudo arranjado para a viagem para o Rio, no dia mesmo da mudança, um dos carregadores, a fim de desentulhar a passagem, empurrou a mesa para um ângulo da sala, mas com uma precisão profissional tão perfeita, que imediatamente todos perceberam que naquela posição a mesa não seria um problema de espaço. E ele encerrava essa pequena e bonita parábola: “Quando vi que a mesa já não era um problema, compreendi logo que minha mudança para o Rio era completamente inútil. Mas que fazer? Já estava de passagens compradas”.

Só fui reencontrá-lo em 1945, quando tive a satisfação de trabalhar por uns três meses, subalternamente, a seu lado. E em 1949, quando uma viagem vadia me levou ao Banco do Crédito Real, de que ele era diretor. Um diretor de banco que estudava gramática grega, disfarçado atrás da escrivaninha impotente, todas as vezes que um homem de negócios vinha expor-lhe uma lucrativa transação. Um diretor de banco que tinha em sua gaveta as últimas novidades literárias, e que, quando eu lhe falava nos vinte por cento da reforma, dizia: “Está bem, mas você não achou uma beleza o último romance do Cornélio”? Um diretor de banco que não se distinguia apenas pela sensibilidade e pelo gosto artístico, mas que entendia também de finanças, não para ganhar dinheiro, que ainda não nasceu no Brasil meia dúzia de pessoas tão desprendidas quanto ele, e sim porque onde estava o problema econômico estava o problema humano — vida e paixão de Luís Camilo de Oliveira Neto.

Foi um homem culto, inteligente, correto e bom — virtudes que em geral muito se atropelam neste país cálido e precipitado.

Nota: Título atribuído por Humberto Werneck à crônica identificada na base de dados da instituição como “No dia em que embarquei...".

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