Velhas notas esparsas de viagem que tenho preguiça de juntar, articular, para fazer uma crônica:

A floresta, vista de cima, é plana, monótona, imensa como o oceano. Há algumas nuvens brancas espalhadas pelo céu, pouco abaixo de nós. Elas parecem voar em sentido contrário ao nosso. Mas lá em baixo, na floresta, as manchas de sombra que elas projetam estão imóveis. A nuvem anda — mas a sombra fica.

É tudo ilusão da vista: mas o que não é ilusão no mundo do movimento e da distância? Minha verdade é esta: a nuvem voando, a sombra parada. E o avião sempre me dá uma espécie de lirismo pueril: penso em alguém que passou como nuvem branca no céu; e em sua sombra imóvel no meu coração. A sombra é a minha verdade; não a nuvem... A nuvem é dos outros.

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Nesse aeroporto de Belém há toda uma quinquilharia pitoresca para tentar os turistas. Coisas de casco de tartaruga e conchas; e também quadros e pratos com aplicaçõe de asas de borboletas, vindos provavelmente do Rio, joias baratas de pedras coradas de Minas, caixinhas e bandejas com mosaicos de madeira do Paraná.

No meio desse amontoado triste de coisas coloridas há surpreendentemente, um Buda — um Buda verde, de massa ou de barro, grande, solitário.

De onde terá vindo esse Buda vulgar e caro que se senta, aborrecido, entre pires enfeitados com asas das pobres borboletas assassinadas pela ganância e pelo mau gosto? Perto dele há um horroroso abajur de casco de tatu. Daí talvez seu ar aborrecido. Que estranho bêbado comprará um dia esse deus infeliz de cerâmica barata? “Que rei bêbado será”, Dante Milano?

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O seringueiro é meio nômade: sua vida muda ao sabor da natureza e das estações. Ele planta, na terra alheia, e às vezes para usar somente alguns meses, sua casa primitiva.

Mas, dentro de sua indigência, essa casa é um milagre de arquitetura. Está armada sobre estacas, mesmo onde não chegam as águas da enchente: como as paredes, o assoalho é feito com finos pedaços côncavos de palmeira paxiúba: como não são bem ajustados, deixam passar o ar. A cobertura é também de folha de palmeiras. A casa é quadrada, e a metade da frente não tem paredes; às vezes tem um parapeito também de paxiúba. É a varanda, que funciona como living: não seria possível inventar um lugar mais fresco no meio da floresta.

A segunda metade é ocupada por quarto e cozinha, com o fogão de barro. Feita apenas de palmeiras, completamente vegetal, essa casa é uma obra-prima de adaptação ao meio. E que colchões suntuosos de que palácios me darão jamais o infinito bem-estar da rede branca que armou para mim, na sua “varanda”, pela madrugada, o caboclo Chico Pedro, veterano da revolução do Acre, quando subimos a barranca do rio até o seu rancho, no fim de uma pescaria noturna? Que vinhos e que pratos valerão essa cachaça e esse peixe moqueado que ele me trouxe na rede imensa em que eu abandonara, feliz, o corpo cansado?

Chico Pedro ou Chico Antônio? Esqueci o nome: o homem, o amigo, o mágico, o irmão, esse jamais esquecerei.

rubem-braga
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