A chegada de Maria Julieta

Maria Julieta e seu gato siamês Bernardo, 1951. Foto de Manuel Graña Etcheverry/ Arquivo familiar de CDA.

Não se sinta mal se você não conhece muito de Maria Julieta Drummond de Andrade. É que a escritora ainda não ocupa mesmo o espaço devido na estante da crônica brasileira. Como acontece com tantos autores que confiaram suas laudas aos jornais, às vezes o tempo tarda a reconhecer seus méritos. A boa notícia é que, a partir de hoje, os leitores do Portal têm acesso a uma pequena seleta de 20 crônicas que dão mostra de seu talentoso texto enxuto, como descreveu Rachel de Queiroz. Maria Julieta é a dona da décima sexta cadeira da nossa mesa, uma das mais bem frequentadas de toda a literatura. Quem não a conhece, que trate de conhecer.

Filha única de Dolores Dutra de Morais e Carlos Drummond de Andrade, que também está à disposição de nossos leitores, não é de espantar que tenha se interessado pelas letras desde a infância. Graduou-se na área pela PUC-Rio e, antes mesmo de atingir a maioridade, estreava na praça com A busca, uma novela juvenil. Pouco depois, casou-se com um advogado argentino, com quem teve três filhos, e foi morar em Buenos Aires, onde viveu por 30 anos. Lá, lecionou literatura na universidade e coordenou o Centro de Estudos Brasileiros, órgão responsável por difundir nossa arte com seminários, eventos e publicações. Tradutora, verteu para o português a primeiríssima edição da Nova antologia pessoal, de Jorge Luis Borges, com quem manteve longo contato. Há mais sobre sua vida no texto de apresentação da pesquisadora Elizama Almeida, que também assina a detalhada cronologia da escritora.

Em 1977, Maria Julieta recebeu por telefone um pedido do jornalista Humberto Werneck, às voltas com os preparativos de uma reportagem de capa da revista Veja para os 75 anos de Drummond. Ele queria encomendar um texto afetuoso, uma crônica quem sabe, sobre as memórias com o pai. Insegura, ela não deu certeza: “Se eu fizer, levo comigo quando for para o aniversário”, respondeu de Buenos Aires. Chegou com o texto pronto. A crônica fez tanto sucesso que lhe rendeu um espaço no jornal O Globo, onde passou a publicar todos os sábados. Só bem perto do fim da vida, uma década depois, deixou de escrever a coluna.

Meu pai”, porta de entrada de Maria Julieta para o mundo da crônica, ganha agora a sempre sensível leitura de Bia Paes Leme, que você pode ouvir como guia pelas lembranças da menina: “Muita gente há de imaginar que ser filha de poeta deve ser um destino glorioso; outros, que o fardo será pesado. Para mim, sempre foi natural ter o pai que tenho”. A relação com as palavras é, naturalmente, uma memória agradável: “Também criávamos palavras, num código impenetrável para os de fora. Quando os frios do restaurante alemão eram excepcionalmente gostosos, ou estávamos felizes, só um termo era capaz de exprimir a sensação de prazer: otimamenterriguantemebonte”. Para dizer o contrário, usavam sempre “três adjetivos esdrúxulos”: “Isso está muito peristáltico, analgésico e parabólico”.

No jogo de forca, certa vez, o pai a surpreendeu com a palavra “opoponax”, estranha a todos que não ostentam o fardão da Academia Brasileira de Letras, o que inclui crianças de oito anos. A menina, por sua vez, reconquistou os pontos com “olidodojardim”, neologismo que criou para se referir à Praça do Lido, em Copacabana, onde costumava andar de bicicleta. A comunhão lexical entre os dois era tamanha que, mais tarde, quando Drummond adoecia, Maria Julieta podia escrever as crônicas semanais do pai, sem alterar a assinatura. E quando ela ficava de cama, sabia que podia contar com o ghostwriting dele. Gentilezas de colegas de ofício.

Maria Julieta escreveu muito sobre bichos e natureza, sobre os costumes de Minas, do Rio e de Buenos Aires. Memórias, saudades, impressões cotidianas. Como todo cronista, tinha um olhar afiado para observar o mundo, como se nota em “No restaurante”: “Ela gostava de vez em quando de sair mais cedo do trabalho, caminhar pelo bairro ao anoitecer e, a caminho de casa, entrar naquela pizzaria confortável, onde já conhecia os garçons e podia comer um bife com salada, tranquilamente”. Sentada numa mesa junto à parede, entregou-se a certos hábitos da solidão: a carne macia, a meia garrafa de vinho tinto, o silêncio e o livro que a acompanhava.

Acontece que a vida é mais interessante do que a literatura, e a moça trocou o livro pelas pessoas ao redor: de um lado, um homem igualmente solitário, munido de jornal, tomava chope e comia pastel; do outro, “duas senhoras gordas de meia-idade” devoravam uma pizza gigante, coberta de queijo derretido, e “quase não conversavam”. Em grupo, sexagenárias, daquelas que se reúnem uma vez por mês para ir ao cinema e depois esticam para o jantar, falavam sem parar, ao mesmo tempo, achando muita “graça umas nas outras” enquanto se esforçavam para não ser infelizes.

Na outra ponta, um casal lidava com o pandemônio gastronômico da filha pequena, que queria cortar sozinha o seu próprio frango, todo desfiado pelo chão e pela toalha. O pai, diplomata, tentava conciliar a situação com a mãe, mortificada, que foi disfarçadamente engolindo, “entre ravióli e ravióli, os pedacinhos de frango que a filha desprezara” – afinal, tudo anda tão caro...

Outro casal, de jovens namorados “absortos na mútua contemplação, esquecidos da pizza pequenina que encomendaram, abandonados um no outro”, fazia o contraste pacífico. O braço esquerdo dele imobilizava o direito dela, cuja mão esquerda segurava o cotovelo direito dele. E, “com a mão livre, o rapaz alisava um cacho comprido de cabelo claro da moça, moldando-o, envernizando-o como se estivesse compondo uma escultura delicada”. Muito de vez em quando, comiam um pedacinho da pizza já fria, e quase nada falavam, “expressando com os olhos, com os gestos lentos, com a inapetência, o delírio que antecede o conhecimento que antecede a paixão e que os tornava únicos, insubstituíveis naquela noite de outubro”.

De repente, a mulher se deu conta de que, nas mesas do restaurante, o mais completo ciclo da vida se formara: “o antes e o depois de cada um, o que a esperava, o que já tivera, o amanhã, o agora mesmo, o perdido, o nunca mais, o de sempre, a continuação”. Sentiu “ternura e piedade” por todos, inclusive por ela mesma. E, então, pagou a conta e saiu.

Houvesse mais espaço, destacaríamos outras pequenas preciosidades, como “O retrato”, em que a cronista se depara com uma antiga fotografia de menina enquanto remexe em papéis alheios, ou “Na varanda”, sobre o hábito, hoje em perigo de extinção, de velhinhos lagartearem no alpendre. Mas deixemos essas para os próximos textos. Boa leitura.