Luminária, São José dos Campos, SP, 1950. Foto de Hans Gunter Flieg, coleção Hans Gunter Flieg/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Ivan Marques é professor de literatura brasileira na Universidade de São Paulo. Recentemente, publicou a biografia João Cabral de Melo Neto (Todavia, 2021), premiada pela APCA. É autor também de Cenas de um modernismo de província: Drummond e outros rapazes de Belo Horizonte (Editora 34, 2011), Modernismo em revista: Estética e ideologia nos periódicos dos anos 1920 (Casa da Palavra, 2013), Para amar Graciliano (Faro, 2017), Orides Fontela (EdUERJ, 2020), entre outros. Como pesquisador, escreveu diversos artigos sobre modernismo, poesia brasileira e as relações entre literatura e cinema no Brasil, além de prefácios para livros de crônicas de Carlos Drummond de Andrade e Paulo Mendes Campos.
Como parte da celebração do centenário da Semana de 22, fizemos esta breve entrevista com o professor, a quem muito agradecemos a disposição e a gentileza, para entendermos um pouco mais sobre a relação da crônica com o modernismo.
Para início de conversa, seria possível, em linhas gerais, resumir o que foi o modernismo? Quais motivações reuniram aquele grupo e qual o impacto do ideário modernista na literatura brasileira?
O modernismo foi muito mais um movimento (aberto, múltiplo, heterogêneo) do que uma estética ou, como antigamente se dizia, uma “escola” uniforme e monolítica. Além do estímulo à experimentação e à pesquisa, não havia nenhum programa, nenhum receituário, nenhuma regra. A princípio, a motivação da geração de 1922 foi o desejo de renovar e atualizar a arte brasileira a partir do contato com as vanguardas europeias. Esse foi o “momento futurista” da Semana de Arte Moderna, da revista Klaxon, dos livros Pauliceia desvairada e Memórias sentimentais de João Miramar. Em seguida, houve a inflexão “brasileirista”, cujo marco foi a viagem dos modernistas a Minas Gerais, em 1924, ciceroneando o vanguardista estrangeiro Blaise Cendrars. A partir de então, o movimento modernista se definiria como um grande projeto cultural, marcado, como no tempo do romantismo, pela busca de uma arte nacional, que nasceria, na concepção de Mário de Andrade, da pesquisa da cultura popular e da busca por uma língua brasileira. Entretanto, a par desse projeto construtivo e utópico, que teria grande repercussão na cultura brasileira dos anos 1930 a 1950, o modernismo jamais deixaria de ser um movimento destruidor, irônico, irreverente — “até destruidor de nós mesmos”, escreveria Mário em sua famosa conferência de 1942. É o que se vê em livros como Macunaíma, que a despeito do otimismo do autor e da sua crença no Brasil se revelou uma obra negativa e pessimista. Esse lado subversivo do modernismo também teria ampla ressonância na cultura brasileira, especialmente depois do golpe militar de 1964, quando as obras de Mário de Andrade e, sobretudo, Oswald de Andrade, foram revividas e reatualizadas no contexto de resistência à ditadura.
Disso tudo, o que é facilmente identificável na leitura de crônicas? O quanto dessas características foi incorporado pelo gênero? É possível dizer que a crônica, sobretudo a partir dos anos 1950, não só realizou como atualizou o ideário modernista?
A crônica vinha de uma tradição longa no Brasil, tendo sido cultivada, desde o século XIX, por nossos maiores escritores. Desde José de Alencar e Machado de Assis, já era possível notar uma inflexão particular desse gênero no Brasil, dada pela aproximação decisiva do cotidiano e pela busca de uma linguagem mais leve e arejada. A expressão “ao rés do chão”, utilizada por Antonio Candido, indica nitidamente a afinidade da crônica, esse “gênero menor”, com traços marcantes da poética modernista, como a simplicidade buscada especialmente na poesia de Manuel Bandeira, que modestamente se autodenominou um “poeta menor”. A prática da crônica foi bastante comum na geração modernista. Além de Bandeira, escreveram crônicas Mário, Oswald, Carlos Drummond de Andrade e ainda os autores do Nordeste que dominaram a cena literária nos anos 1930, a começar por Gilberto Freyre. A valorização do jornal — “a poesia existe nos fatos”, enunciou Oswald na abertura do Manifesto Pau-Brasil —, a abertura de janelas para o cotidiano, o gosto pelos instantâneos e pela linguagem solta e rebaixada, tudo isso explica a atração dos modernistas pela crônica. A partir de meados do século XX, o grande momento vivido pelo gênero no Brasil — no qual se especializaram, entre outros, Rubem Braga, seu expoente máximo — constitui, de fato, um dos principais marcos da atualização do ideário modernista, que na mesma época seria revivido e revalorizado na poesia (com a entrada em cena dos poetas concretos) e, em seguida, em outros campos artísticos.
Os professores Antonio Candido e José Aderaldo Castello incluíram Rubem Braga entre os autores do manual dedicado ao modernismo na série Presença da literatura brasileira, de 1967. Salvo engano, é a primeira vez que o cronista é escalado em uma obra do tipo. É possível comentar a relação?
A qualidade literária das crônicas de Rubem Braga, que não perderam nada de seu frescor e vigor ao longo das décadas, foi reconhecida por vários críticos, como Antonio Candido e Davi Arrigucci Jr., que a ele dedicou importantes ensaios. É curioso que um grande escritor como Braga tenha se realizado plenamente no cultivo de um gênero literário considerado “menor”, o que dá uma pista da força, entre nós, dessa tradição da crônica e de seu potencial literário. Como observou Arrigucci, a relação de Braga com a literatura modernista (especialmente a poesia de Manuel Bandeira) foi decisiva para os ótimos resultados alcançados por sua prosa. Influência insuperável para a definição e consagração do gênero no Brasil, está claro que, por meio de Braga, muito desse legado modernista se transferiu para as novas gerações.
Você acha que alguns cronistas se interessaram mais em seguir esses caminhos do que outros? Existe alguma obra, ou algum autor, que você considera ter desenvolvido melhor essas conquistas?
Além de Rubem Braga, os cronistas mineiros Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos seriam ótimos exemplos, além de Drummond, é claro, do bom aproveitamento dessas conquistas. No caso de Paulo Mendes Campos, a crônica ganha também uma inflexão filosófica particular, além de uma linguagem de enorme sabor e desenvoltura. No caso de Drummond, é curioso observar como, por meio da crônica, ele manteve seu elo com as raízes modernistas mesmo na fase classicizante dos anos 1950, em que sua poesia experimentava voos metafísicos. Mas a tradição da crônica ficou tão impregnada nos escritores brasileiros que até uma autora sofisticada como Clarice Lispector se daria bem escrevendo crônicas, embora costumasse ressaltar sua dificuldade no gênero. É interessante pensar também como a crônica pode ter contribuído para sua carreira de ficcionista, preparando de alguma maneira as obras que escreveu nos seus últimos anos de vida.
Por fim, aos interessados em se aprofundar no assunto, poderia indicar algumas leituras?
Indicações obrigatórias são os ensaios já mencionados de Antonio Candido (“A vida ao rés do chão”, incluído no livro Recortes) e Davi Arrigucci Jr. (“Braga de novo por aqui” e “Fragmentos sobre a crônica”, inseridos no volume Enigma e comentário). A obra esgotada A crônica: O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil, publicada pela Fundação Casa de Rui Barbosa em parceria com a Editora da Unicamp, reúne dezenas de artigos esclarecedores sobre o tema. Quanto aos cronistas, poderia destacar, além da produção de Rubem Braga, os livros Crônicas da província do Brasil, de Manuel Bandeira, Os filhos da Candinha, de Mário de Andrade, e Fala, amendoeira, de Carlos Drummond de Andrade.