17 set 2024
Guilherme Tauil
Sempre que se mudava para uma casa nova, a primeira providência que Paulo Mendes Campos tomava era instalar os instrumentos de trabalho ao lado de uma janela: “mesa, máquina de escrever, dicionários, paciência”, além de cacarecos e bibelôs, como uma galinha de barro, um Buda de marfim e três cachimbos que pacientemente o aguardavam virar um “homem tranquilo e experiente que fuma cachimbo”. As janelas, ressalta, fazem parte do trabalho do escritor. Sem elas, “a literatura seria irremediavelmente hermética, feita de incompreensíveis pedaços de vida, lágrimas e risos loucos, fúrias e penas”.
Por isso, Paulo prezava por todas as janelas que teve na vida, guardando na memória “um sortido patrimônio de... 2 set 2024
Guilherme Tauil
Em 1905, durante uma conferência no antigo Salão Steinway, cujos pilares ainda estão de pé na avenida São João da capital paulista, o poeta Olavo Bilac decretou, a quem pudesse interessar, que as palavras tinham vida própria. De fato, elas vão e vêm como querem, e na boca do povo ganham sons, perdem letras e tomam caminhos insuspeitos. Às vezes, também são vítimas de reformas ortográficas, que lhes impõem certas intervenções pelas mãos nem sempre delicadas dos gramáticos. Como da última vez, Bilac, que também foi cronista, dá o gancho para falarmos de algumas crônicas dedicadas às palavras.
No Rio de Janeiro de 1969, Carlos Drummond de Andrade foi o único a notar que as pernas das moças...15 ago 2024
Guilherme Tauil
Foi Olavo Bilac que, em parnasianíssimo soneto, tratou a língua portuguesa por “última flor do Lácio, inculta e bela”, referindo-se ao fato de que o nosso idioma foi o último a se desprender do latim vulgar, isto é, aquele praticado por gente como a gente, na região do Lácio, onde outrora retumbaram hinos do império romano. Por isso, inculta. Bela, é claro, não carece de explicação.
Embora ao falante de português seja muito justo o sentimento de gratidão por não ter sido alfabetizado em alemão ou em húngaro, é inegável que o adjetivo “complicada”, ou ao menos “complicadinha”, cairia bem no poema de Bilac dedicado à língua materna. Nossos tropeços são muitos, as dúvidas incontáveis, e vira e mexe se tornam...31 jul 2024
Guilherme Tauil
Em janeiro deste ano, a obra de Graciliano Ramos entrou em domínio público, e alguns de seus romances já chegaram de cara nova às prateleiras. Até o momento, no entanto, não se tem notícia de reedições dos seus livros de crônicas. Embora a prosa curta do alagoano seja ofuscada pela longa, suas crônicas sobreviveram ao tempo e foram compiladas nos volumes póstumos Linhas tortas e Viventes das Alagoas, ambos de 1962.
Três dos nossos cronistas aqui do Portal escreveram sobre Graciliano, sendo Rubem Braga o mais chegado no assunto. Não é pra menos, já que os dois foram vizinhos durante alguns meses de 1937, no Rio de Janeiro. Braga morava numa pensão da rua Corrêa Dutra, 164, no Catete, e levou... 1 jul 2024
Guilherme Tauil
Lá em 1893, quando as estações do ano tinham mais cara própria, Machado de Assis se queixou numa crônica que o inverno andava mais longo e cruel que de costume. “Quem acorda cedo, quando a Aurora, como na Antiguidade, abre as portas do céu com os seus dedos cor-de-rosa, entenderá bem o que digo”, escreveu o cronista de hábitos matutinos: “Eu levanto-me com ela, aspiro o ar da manhã, e não me queixo; eu amo o frio”. O escritor, aliás, nasceu num 21 de junho, há 185 invernos, justo no dia em que caem as últimas folhas do outono e o vento gelado vem irritar nossas narinas.
Leitor atento das notícias da Europa, Machado achou curioso que os europeus andassem penando num calorão intenso, a ponto de estarem sempre...17 jun 2024
Guilherme Tauil
Quarta agora, 19, Chico Buarque completa 80 anos. Para contribuirmos com a merecida festa que se celebrará em torno do compositor, destacamos algumas crônicas de Clarice Lispector dedicadas a ele – que, aliás, pode até ser considerado um colega de ofício, pois foi cronista em duas oportunidades. Do seu autoexílio na Itália, Chico escreveu cerca de 12 crônicas para o Pasquim, entre 1969 e 1970; e da França, durante 40 dias, cobriu a Copa de 1998 para os jornais O Globo e O Estado de S. Paulo.
Mas vamos ao que interessa. Chico e Clarice se conheceram em 1968, numa noite em que, para o espanto de todos os frequentadores do Antonio’s, habitat gastronômico da intelectualidade artística do Leblon,...29 mai 2024
Guilherme Tauil
A crônica, como o leitor do Portal já sabe, é um gênero sem forma fixa, meio líquido. Digamos que, no geral, ela se adapta ao recipiente em que é posta. E embora não se dê com qualquer pote, ela aceita uma boa variedade de copos, vasilhas e cumbucas. Às vezes, uma crônica tem toda a pinta de ser outra coisa, mas como é servida na tigela de um cronista, com a graça e o manejo da pena leve do cronista, fica sendo crônica. É o caso das muitas listas que Paulo Mendes Campos gostava de enumerar em suas colunas.
Os mais belos lugares-comuns, por exemplo, é um catálogo de quase duzentos chavões e clichês, isto é, pilhas gastas da língua portuguesa, como definiu o também cronista Humberto Werneck quase cinquenta...15 mai 2024
Guilherme Tauil
Não foi em homenagem ao dia das mães que Rubem Braga publicou, em março de 1968, uma trinca de crônicas sobre um entrevero envolvendo dona Rosalina, a proprietária de uma pensão no Catete, e suas duas filhas. Mas a data nos serve de gancho para rememorar a parte um, a parte dois e a parte três da altercação materna na pensão, onde Braga se hospedou durante alguns meses. Era um sobrado que ficava na rua Correia Dutra, quase na esquina com a Bento Lisboa, e já não existe mais. Graciliano Ramos, chamado sempre de Brasiliano pela dona do estabelecimento, também morou lá com sua família. Foi no quartinho dos fundos, aliás, que escreveu Vidas secas. Mas Graciliano é assunto...30 abr 2024
Guilherme Tauil
O amor acaba, você sabe. Provavelmente já leu isso naquela primorosa crônica de Paulo Mendes Campos. Mas como de tudo fica um pouco, o amor costuma deixar uma porção de coisas para trás, soltas no ar ou entocadas nos peitos dos ex-amantes. E às vezes tudo isso toma forma de novo quando acontece um reencontro, tempos depois.
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“Procurava não estar nos lugares onde ela pudesse aparecer”, escreveu Carlinhos Oliveira, por saber que seria “impossível recomeçar aquela bela aventura”. Um dia, porém, o acaso os reuniu. Ali estava ela. Ele a olhou e, para sua surpresa, sentiu indiferença. Ela já não era a mesma. Ele também não era mais aquele rapaz apaixonado da juventude. Agora, era “um homem...15 abr 2024
Guilherme Tauil
No título deu para disfarçar o assunto, mas em respeito às multidões que têm verdadeira repulsa desse inseto, é preciso abrir o jogo logo nas primeiras linhas: este é um texto sobre baratas. Mas, calma, não há nada muito gráfico nem desconfortável. Nada digno das páginas de um romance de Clarice Lispector, digamos. Só mesmo alguns episódios corriqueiros em que cronistas jogaram luz sobre esses repulsivos bichos noturnos.
Otto Lara Resende disse que a barata “não é um feio privilégio do Brasil”. É universal. Por exemplo, no verão Nova York fica entregue não às traças, mas às baratas. “Só que as de lá, do Hemisfério Norte, são miudinhas” e rápidas, com fôlego de campeão olímpico. Basta acender a luz e elas... 1 abr 2024
Guilherme Tauil
No princípio, dizem, era o verbo. Dele veio a luz, que resplandeceu nas trevas. Depois surgiram o céu e a terra, as águas e as montanhas. Em algum momento desse artesanato primordial, talvez para aplacar alguma solidão divina, criaram-se os anjos. Um deles, o mais belo e distinto de todos, rebelou-se contra a sua natureza. Por arrogância e orgulho, ou por desejo mesmo, caiu. Tornou-se o primeiro dos demônios. O diabo. Você já deve ter ouvido essa história contada por aí. Por isso, podemos resumir tudo num parágrafo só e seguir direto para o Rio de Janeiro, alguns milhares de anos depois, onde cronistas preenchiam suas laudas na imprensa, tentados igualmente por anjos e demônios.
Sobre o demônio, disse Paulo Mendes...15 mar 2024
Guilherme Tauil
“Nunca vi boa amizade nascer em leiteria”, disse certa vez Vinicius de Moraes, inveterado beberrão, para quem o melhor termômetro de afetos era uma garrafa de uísque – uma, no caso, é modo de dizer, pois melhor se fossem duas, três, quatro. “Uísque é o cachorro engarrafado”, concluiu, certamente depois de algumas doses. Não é improvável que esse diagnóstico etílico tenha surgido durante um pileque com Rubem Braga, outro voraz consumidor de malte.
Além da dedicação às garrafas, os dois amigos tinham vários pontos em comum: nasceram no mesmo 1913, exerceram postos diplomáticos e foram grandes gozadores dos prazeres da vida, apaixonando-se com tremenda facilidade. Braga, dos nossos maiores cronistas, fez também poesia.... 1 mar 2024
Guilherme Tauil
“De repente, não mais que de repente”, Vinicius de Moraes se junta à mesa do Portal da Crônica Brasileira. O poetinha, como era carinhosamente chamado, é o décimo oitavo cronista da casa e chega com uma deliciosa amostra de 15 textos. Sua vida, intensa como poucas, está resumida numa cronologia preparada por Katya de Moraes. E um belo texto de apresentação, assinado pelo músico e pesquisador Bruno Cosentino, dá conta de aprofundar algumas questões peculiares desse grande personagem da cultura brasileira – o único, segundo Carlos Drummond de Andrade, a realmente levar uma vida de poeta, totalmente sob o signo da paixão.
Vinicius de Moraes foi múltiplo – do contrário, seria apenas Vinicio...15 fev 2024
Guilherme Tauil
“O Carnaval morreu, viva a Quaresma!”, anunciou Machado de Assis, em 1877. Desnecessário esclarecer que o cronista se referia apenas ao desfecho dos três dias da festa, e não a um definitivo esticamento de canelas purpurinadas do Carnaval, já que a folia segue majestosa e colorida. Naquela época, tendo atingido a sua maioridade há pouco tempo, o Carnaval ainda não era isso tudo e precisava provar o seu valor para muitos. Machado mesmo, que sempre elogiou a festa pelo riso universal e inextinguível que promove entre o povo, achou a daquele ano meio chocha.
Não sabemos o que pode ter motivado esse diagnóstico desanimado – talvez um cortejo já cansado tenha passado em sua rua, talvez uma marchinha destrambelhada...15 jan 2024
Guilherme Tauil
O mar, quando quebra na praia, é bonito. Mas às vezes, virado e de ressaca, é também cruel. Ergue-se num rompante violento e vai engolindo tudo que a humanidade construiu. Em 20 de abril de 1963, o Rio de Janeiro sofreu uma dessas bordoadas intempestivas de água e sal. Uma pessoa morreu e as ondas foram lamber as paredes do Copacabana Palace. Prédios foram invadidos, barcos naufragaram na Baía de Guanabara, o jardim do Museu de Arte Moderna ficou submerso e a pista de pouso do Aeroporto Santos Dumont alagou. A ressaca foi tão brava que reverberou até Niterói, engolindo a orla de Icaraí.
O mar, na rua, foi molhar também a coluna de Carlos Drummond de Andrade no jornal, no dia seguinte. “O mar agiu em estado de fúria... 2 jan 2024
Guilherme Tauil
Pois é, esse aí foi mais um ano que acabou. Passou agorinha para nunca mais. Não sei se você é dos que tendem ao hábito e passam a virada sempre do mesmo modo, no mesmo lugar e com as mesmas pessoas, mas Rubem Braga, toda a vida angustiado por aquele “segundo que vem depois da meia-noite”, pisava no ano novo de qualquer jeito, com qualquer pé – já passara a noite sozinho, “andando como um tonto na rua”, “afundado no canto de um bar ruidoso”, tentando telefonar em vão, dormindo, com dor de dente, ou “nos braços de algum amor eterno”, que depois dobrou a esquina e partiu, sem a mais leve mágoa nos cotovelos, como o ano que se foi.
Os anos e os braços passam, mas fica sempre “essa emoção confusa...30 nov 2023
Guilherme Tauil
Há quinze dias, publicamos a primeira parte de um especial sobre os clubes de futebol dos cronistas. Falamos do Fluminense, do Flamengo e do América, com direito a um brevíssimo aceno ao Bonsucesso. Agora, como prometido, trataremos da dobradinha alvinegra que ficou de fora: Vasco e Botafogo. Não por acaso, os dois times mais aplaudidos pelo elenco de escritores do Portal.
Na arquibancada do Vasco, sentam-se Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade e, vá lá, Antônio Maria – na verdade, ele era Sport no Recife, mas virou a casaca ao desembarcar no Rio, por amor ao seu conterrâneo Ademir de Menezes, ídolo cruz-maltino. Depois, com a amarga derrota do Brasil na Copa de 1950 – cujo gol de estreia, aliás, foi feito...