Depois do Carnaval

Componente do Salgueiro, Rio de Janeiro-RJ, fev. 1969. Fotógrafo não identificado. Coleção José Ramos Tinhorão/ Acervo Instituto Moreira Salles.

“Deus me abandonou/ no meio da orgia/ entre uma baiana e uma egípcia./ Estou perdido”, escreveu Carlos Drummond de Andrade em poema de 1934. É difícil precisar a intenção do autor. Na folia, o que soa como desamparo melancólico bem pode significar liberdade plena – “fã ou hater?”, perguntariam na internet. Talvez os versos sejam uma mistura de tudo isso e dependam mais da interpretação de quem os lê. Mas não importa. Prefira você pular Carnaval ou pular o Carnaval, sem ver um palmo de serpentina sequer, atravessamos todos mais um cortejo da maior festa popular do mundo. E para a ressaca, preparamos uma seleta de crônicas escritas no pós-festa, ainda com a quentura circulando no sangue e os confetes espalhados pelo chão.

Quem primeiro desponta é o próprio Drummond, que embora não fosse chegado na avenida, foi tema de escolas de samba duas vezes – em 1980, pela Vila Isabel, e em 1987, pela Mangueira, campeã. Sua aptidão para o rebolado era nula – “Na minha face/ gravado foi por lei hereditária:/ ‘Este não dança’” –, mas o Carnaval aparece com certa frequência em sua obra. Numa crônica de 1963, por exemplo, ambientada num bailinho do Copa, alguém pergunta a uma descamisada: “Que beleza de umbigo, moça. É natural?”. A interpelada riu, mas não quis responder, deixando a dúvida no ar. É que “há umbigos tão lapidares que não parecem obra de médico obstetra, mas de cirurgião plástico”, justificou o curioso.

Não era a primeira vez que o Umbigo desfilava com seu “charme insólito” nos bloquinhos, revelando “sua capacidade de divertir-se, de criar e de transmitir alegria às demais partes do corpo”. Mas houve um tempo, acredite, em que os panos cobriam as reentrâncias – quase todas – dos foliões. Foi naquele Carnaval de 1963 que nossa recôndita cavidade abdominal conquistou em definitivo o direito de estar à mostra, com toda sua variedade dançante de formas e tamanhos. Ela deixou de ser “uma reminiscência da vida preliminar”, passando de cicatriz a “estrela, joia ou amêndoa engastada na suave proeminência do ventre”. Com isso, deu sua definitiva e dionisíaca contribuição ao Carnaval e à “elevação da alegria ao nível do esporte”.

Alguns anos depois, em 1967, Dinah Silveira de Queiroz escreveu sobre o caso de Dorothy, uma turista americana que desembarcou no Rio para curtir o Carnaval, sem saber que seria o seu desfile derradeiro. Sua morte quase não saiu na imprensa, atribulada com acontecimentos festivos, e o que se soube dela era só isso: tinha mais de 60 anos e chegou com um grupo “sequioso de alegria, meio ingênuo, de turistas do navio de luxo”. Nem um retrato sequer da viajante saiu no jornal, mas a cronista jurava ser capaz de descrevê-la: “Cabelos grisalhos, saindo de um chapeuzinho de palha muito jovem, com a aba sombreando os olhos de um azul vivo”. Desceu “com um vestido estampado, tão feliz pelo braço do marido, que mais parecia uma noiva adolescente”.

Dorothy “levava seus 60 com a mesma desenvoltura de quem carrega 20”, e de imediato se deslumbrou com o Carnaval carioca. Nunca vira coisa mais linda, nem tão sincera ideia de alegria geral. O Brasil, para ela, “era a maravilhosa terra da abundância”. Ouvira falar, sim, na pobreza e nas mazelas do país, mas tudo aquilo “se espumara” na avenida, abafado por fantasias e marchinhas – “Ela houvera conhecido o paraíso, a Pasárgada”. Era O paraíso de Dorothy.

O folguedo da turista transcorreu numa “desabalada ânsia de vida”. Mas na quarta-feira, quando embarcaria de volta, seu alegre coração “reagiu estranhamente”. Ele viu o Rio, “sentiu a grande ilusão de um Carnaval, que é a caricatura de uma felicidade coletiva, e deixou de bater, simplesmente”. Dorothy morreu, e só seu corpo voltou para casa. A alma feliz de Dorothy ficou no Carnaval para sempre, e dele fez “sua beleza de fim de vida, seu céu de verdade, seu procurado paraíso”.

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Nota do Editor: Para ler a história completa de Dorothy, não deixe de clicar na crônica de Dinah, disponível também em áudio na bela leitura de Elizama Almeida, pesquisadora da casa.

Outra nota do Editor: O primeiro poema citado de Drummond é "Um homem e seu Carnaval", do livro Brejo das almas. O segundo "Carnaval e moças", de Esquecer para lembrar.