Fonte: Quadrante 2, 4ª ed., Editora do Autor, 1968, pp.180-182.

Foram tantas as notícias depois do Carnaval, que quase não houve lugar para o caso de Dorothy. Celebra hoje a cronista a aventura dessa radiosa viagem da turista americana. Pela lacônica informação do jornal, soube que Dorothy tinha mais de 60 anos, e que chegara com aquele bando sequioso de alegria, meio ingênuo, de turistas do navio de luxo. Não houve um retrato de Dorothy. Mas juro como sei descrevê-la. Cabelos grisalhos, saindo de um chapeuzinho de palha muito jovem, com a aba sombreando os olhos de um azul vivo ― qualquer coisa de resistência à idade, de protesto às próprias rugas. Direi que Dorothy desceu de bordo com um vestido estampado, tão feliz pelo braço do marido, que mais parecia uma noiva adolescente. Há qualquer misteriosa sedução nessa velhice pura dos anglo-saxônicos. A vergonha da idade é uma espécie de peso na consciência, de mal, que o latino quer esquecer, como se ter 60 ou 70 é ter pecado 60 ou 70 vezes sete. Daí a triste brincadeira com os velhos, o ridículo que se faz com eles, se são alegres e engraçados. Mas Dorothy levava seus 60 com a mesma desenvoltura de quem carrega 20. E ela adorou, e ela jurou que nunca vira coisa mais linda que o Carnaval do Rio. O que mais a deslumbrou foi uma ideia de sincera alegria geral. Com seu passinho lânguido, empurrado, sorridente, Dorothy perguntava ao marido:

― Brasil só tem gente bem de Carnaval, gente só alegre e feliz?

O Brasil, para ela, era a maravilhosa terra da abundância, da alegria. Ouvira falar ― na pobreza desse enorme país. Mas agora, tudo aquilo que lera em revistas, sobre as doenças e as crises desse país se espumara. O povo parecia riquíssimo. Muita gente punha na rua, para rasgar nos apertos, e descorar sob as chuvas, trajes caríssimos. Era a queima incessante do dinheiro.

Mas a cidade, em peso, parecia ter dinheiro, um rio de dólares, que a assombrava, para despejar com a maior prodigalidade. Dorothy, que vinha de um país onde se bebe bastante, admirava-se vendo muita gente fazer loucuras de bêbado, em estado de absoluta sobriedade. E ria com os “sujos” da rua, e se extasiava com a graça e o requebro das morenas brasileiras.

Havia o calor, a chuva, uma atmosfera densa, pesada, mas nem isso impedia aquela desabalada ânsia de vida do Carnaval. Ela houvera conhecido o paraíso, a Pasárgada. O país da felicidade, o reino do poeta, onde se pretende a filha do rei. Era um enorme cenário de papelão, essa cidade. Um cenário escondendo misérias, doenças, aperturas de dinheiro, e desapontamentos, mas a turista não sabia. Dorothy, que chegara no sábado de Carnaval, deveria embarcar com os companheiros na quarta-feira. Mas aconteceu que esse alegre coração de 60 reagiu estranhamente. Há aquele velho ditado ― “Ver Nápoles e depois morrer…”. Teria o coração de Dorothy, esse coração de turista, que embrulha histórias e lugares, cometido um engano? Pois ele viu o Rio, sentiu a grande ilusão de um Carnaval, que é a caricatura de uma felicidade coletiva, e deixou de bater, simplesmente. Dorothy morreu de uma síncope cardíaca, justamente na madrugada de cinzas, e agora só seu corpo volta à pátria. A alma alegre de Dorothy ficou no Carnaval carioca, e dele fez ― no céu de papelão com estrelas prateadas ― sua beleza de fim de vida, seu céu de verdade, seu procurado paraíso.

dinah-silveira-de-queiroz
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.