Histórias de pescadores

Puxada do xaréu, Bahia-BA, [1956]. Foto de Marcel Gautherot/ Acervo Instituto Moreira Salles. 

Eram seis os pescadores a bordo daquele barco. Entre eles, Chico Brito, senhor dos mares e dos peixes, o timoneiro Rubem Braga, conhecedor da linguagem dos ventos, e Antônio Maria, novato na arte da isca e do anzol que registrou o episódio na crônica “Nós e os dourados”. A embarcação tinha partido do Rio de Janeiro e depois de umas duas horas de motor, “corricando desde a pedra do Forte”, alcançou seu destino num cenário deslumbrante: à direita estava a Ilha Rasa e, à esquerda, a Ilha Redonda e as “desanuviadas e distintas” Tijucas.

Dando início aos trabalhos, Maria lançou sua linha ao mar sem esperanças, crente de que os peixes esnobariam a isca de principiantes, mas um logo começou a puxá-lo para fora. O cronista resistiu, deu linha, cobrou a margem de passeio cedida, e no fim daquele duelo, num salto de mais de metro, o bicho caiu no barco e deu “o seu último show de valentia”. Tentou se debater pelo direito à vida, mas as rabanadas que dava nas pernas dos pescadores jamais seriam páreo para seus punhais afiados.

Enquanto isso, Chico Brito, “um grande íntimo dos ventos e das correntes marinhas”, liderava a tripulação com sua autoridade barulhenta: saltava de cá para lá, xingava os colegas e os peixes, mudava as sardinhas do anzol. De repente, naquele mar azul de águas límpidas que revelavam “o fundo abismo de Janaína, onde o risco e a morte têm silêncio de flor e som de cantiga”, surgiu um imenso bicho marrom com a cabeça de martelo. Veio nadando macio e, “só de piada”, deu uma cabeçada no motor de popa. “Ninguém disse nada antes de olhar para Chico Brito” e, espantados com a fera, esqueceram de puxar suas linhas com os dourados fisgados. O tubarão passou devorando as oferendas e exibindo seu nado primoroso: para conter a negaceada de um peixe, chegou a dar “uma grande virada de piscina – sem botar as mãos”.

Depois, volteando a embarcação, tomou alguma distância e foi “de cara, em grande velocidade”, chocar seu martelo contra o casco. Antecipando-se nos calcanhares, Braga se posicionou com um gancho para ferir a fera antes do impacto. O bicho levou a ferroada no lombo, e em resposta tentou arrastar o adversário para o mar. “Perdemos um cronista”, pensou Maria. No barco, todos eram contra. Chico Brito preparou a espingarda para resolver a disputa, mas o seláquio sumiu a boroeste, “cortando água, singrando onda com o leque das costas”. Depois do susto, já com o sol esfriando, restava aos pescadores recolher as linhas. Voltaram à praia “com oito dourados e uma história de tubarão para contar”.

Diferente de Maria, Rubem Braga era um amante da pesca. Entre as obras lidas e relidas de sua biblioteca estavam A pesca na Amazônia, de José Veríssimo, e Caçando e pescando por todo o Brasil, de Francisco de Barros Júnior – é o que nos revela Paulo Mendes Campos no perfil “Assim canta o sabiá”. São muitas as crônicas do Velho Braga sobre os trabalhadores dos mares e dos rios. “Pescadores de sossego”, por exemplo, publicada em 1951, traz o relato de uma jornada em que o cronista tomou parte nos mangues próximos a São Vicente.

“Haviam-me prometido pescadas soberbas e robalos deste tamanho, sem exagero; e até espadartes”, escreveu o cronista. Mas ao fim do dia, tudo que o grupo conseguiu pegar foi “uma dúzia de humildes canguás”. Um dos presentes disse que o nome de São Vicente outrora tinha sido Canguás, pois este era o único peixe que se via ali. Os moradores locais negaram, zelosos da variedade de sua fauna aquática. Um velho pescador concluiu que aquilo não tinha importância diante de uma questão muito mais urgente: “Como chegar da pescaria, nós todos, homens grandes e barbudos, com aqueles canguazinhos inocentes?”. O jeito foi comprar umas pescadas no caminho para chegar em casa de cabeça erguida.

“Se não caçamos mais peixe foi porque na maré de lua nova as águas sobem e descem com fúria demais”, justificou o cronista. Se pudesse, teria ficado mais tempo naquelas praias, observando os detalhes da natureza, colhendo das águas algum sustento. Braga não encheu a cesta com peixes, mas tinha caçado o principal: “Esse silêncio e essa brisa dos mangues entardecendo, essa garrafa de cachaça que passa de mão em mão”. Aqueles eram pescadores de sossego e amizade. Pescavam “a melancolia altiva da ponte pênsil”, por onde passava um trenzinho com sua “tristeza negra, humilde e longa”. O melhor seria tomar mais um gole de cachaça, descansar o corpo no bojo daquela velha canoa e ali mesmo dormir, “largado, como se fosse para todo o sempre”.