• Fonte: Braga, Rubem. As boas coisas da vida, Record, 1988. Publicada originalmente em Manchete, de 16/08/1958, com alterações, sob o título "Meu amigo Rubem Braga". Publicada posteriormente no Jornal do Brasil, de 11/09/1988, sob o título "Emplacado o sabiá", e incluída em Mural de Vinicius e outros Perfis, Companhia das Letras, 2000, e O mais estranho dos países, Companhia das Letras, 2013.

Afinal numa livraria Saraiva do Morumbi foi merecidamente emplacado, como padrinho, Rubem Braga. Ele costuma dizer que sou eu a coisa mais antiga que conhece; deixa isso pra lá.

Moramos juntos em Copacabana, e nossa esquina vivia cheia de jornalistas que iam entrevistar diariamente o general Góis Monteiro. Nesses tempos, em que bicicleteávamos fagueiros pelos bairros, fomos alunos de um professor de inglês que ignorava a existência de Bernard Shaw, ainda vivo, e muito vivo. O mestre depois caiu na risada ao traduzir, a nosso pedido, um poema de Ezra Pound, no qual o poeta se dizia uma árvore na mata. (Dispensamos seus serviços e contratamos um professor de russo, o Oleg; era mesmo um gelo de trás pra diante.) Às vezes o Rubem me pedia para dizer ao professor inglês que ele tinha saído; o gringo me empurrava com certo vigor disciplinar, subia os degraus da escada e comandava: “Desce, preguiçazinha, não acreditar em mentira de vagabundo”. Mr. Braga descia a esfregar os olhos e começava sonolentamente a dar sua lição de verbos irregulares.

Deitado na rede, armada no gabinete de trabalho, falava de mulheres, da raridade de um cotovelo bonito, de paixões, arrasadoras ou frívolas, mas a conversa acabava quase sempre no mato, onde ele gostaria de viver, caçando, pescando, bestando e dormindo. Uma vez, entrando numa loja pra comprar gravata, sentiu súbita vergonha de estar escolhendo um pano colorido para amarrar no pescoço; nenhuma boate lhe deu prazer parecido ao que sentiu na choupana de um velho caboclo do Acre, onde compartilhou da cachaça e do peixe moqueado do seringueiro, entre vozes distantes de bichos noturnos.

Já antecipadamente cheio das obrigações urbanas, ele suspirava um evasivo verso colombiano: “Trabajar era bueno en el Sur!”. Fechava os olhos e dormia com facilidade, embora às vezes saltasse da rede em transe sonambúlico e começasse a “matar” com os pés as “saúvas” da sala. Nunca deu inteiramente certo seu casamento com a cidade grande.

Nasceu, modéstia à parte, em Cachoeiro do Itapemirim, um ano antes de estourar a Primeira Guerra; cinco anos depois, estava no caramanchão quando alguém falou que o Brasil tinha ganho a guerra contra a Alemanha. No ano do Centenário da Independência assiste a um desfile de archotes e conhece a glória literária, com uma composição sobre a lágrima, publicada no jornalzinho do colégio. Termina o ginásio no Rio, onde inicia o curso de Direito, recebendo o diploma de bacharel em Belo Horizonte. É aí que se revela o jornalista, transformando um assunto sem repercussão – um desfile de cães – numa página graciosa, até hoje relembrada por velhos colegas. Faz a cobertura da Revolução de 1932 pelo Diário da Tarde, e chega a ser preso, suspeito de espionagem, na região do túnel da Mantiqueira.

Daí por diante, a profissão de jornalista encarrega-se de tanger a vocação cigana de RB: “Como Quincas Cigano (seu tio), eu também só tenho caçado brisas e tristezas. Mas tenho outros pesos na massa do meu sangue”.

Foi como jornalista que chegou a São Paulo com 20 anos e 30 mil-réis; como jornalista fundou a Folha do Povo em Recife; como jornalista assistiu à rendição de uma divisão alemã na Itália, acompanhou a queda de Vargas em 1945 dentro do Ministério da Guerra, fez a cobertura da primeira eleição de Perón e da segunda de Eisenhower; como jornalista entrevistou Picasso e outros grandes, ou transfigurou acontecimentos humildes por todos os cantos do mundo, Brasil, Argentina, Chile, Paraguai, Colômbia, Cuba, México, Estados Unidos, Inglaterra, Índia. Quincas Cigano!

A eventualidade do Escritório Comercial do Brasil em Santiago do Chile não apagou o homem de jornal, e ainda como embaixador no Marrocos continuou a mandar crônicas, confessando: “Toda a minha vida enfrentei mais ou menos bem as tarefas que me tocaram, das mais humildes às mais honrosas. Sem brilho e sem fulgor, como diz um velho samba – mas razoavelmente”. Até hoje só não se acostumou com uma coisa: cadeia.

Vinicius de Moraes esboçou seus traços num poema: “Terno em seus olhos de pescador de fundo/ Feroz em seu focinho de lobo solitário/ Delicado em suas mãos e no seu modo de falar ao telefone”. 

Manuel Bandeira, seguramente o mais fervoroso de seus fãs, falava muito sobre “a inefável poesia que é só do Braga, sempre bom e, quando não tem assunto, então, é ótimo”. 

Sempre o vi leitor da Bíblia, do padre Antônio Vieira, de Diogo do Couto, do excelente Francisco Manuel de Melo, de livros esquisitos sobre emas, elefantes, colibris, da lista telefônica e sobretudo de jornais e revistas. Não muito mais do que isso, mas José Lins do Rego, entusiasmado com uma crônica do Braga sobre um pé de milho, uma vez me pegou pelo braço e exclamou bem à paraibana: “Esse homem diz que não lê quase nada mas sabe de tudo!”.

Muito releu também Os sertões, A pesca na Amazônia, de José Veríssimo, e Caçando e pescando por todo o Brasil, de Francisco de Barros Júnior.

Em matéria de poemas, o que mais o tocou foi o “Cântico dos cânticos”, cujos versículos costuma recitar com ênfase entre os íntimos. Não é bom leitor de romances, e o que mais o impressionou foi As aventuras de Júlio Jurenito, de Ilia Ehrenburg, tendo se decepcionado, para indignação de Joel Silveira, com O vermelho e o negro, de Stendhal. Não é de teatro, por horror aos entreatos, e contribui pouco para a bilheteria do cinema, lembrando-se com emoção de Bali, A ilha das virgens nuas, Luzes da cidade, O encouraçado Potemkin...

Não fosse cronista ou poeta-cronista, creio que o velho Braga seria desenhista, uma espécie talvez de Tiepolo de Cachoeira do ltapemirim, de traços apenas sugestivos e líricos. Mas não quis fazer parte da recente exposição de escritores que pintam o sete, na Casa de Rui Barbosa.

Falando num grupo de estranhos, é uma lástima, quase ininteligível, e já fui seu intérprete num bar do Pina, em Recife, até o quinto uísque, quando ele passou a ser entendido somente por Deus.

Mas é uma flor, precisamente uma orquídea que atende pelo nome de Physosiphon Bragae Ruschi, classificada e nomeada pelo naturalista Augusto Ruschi.

Grande escritor. Capaz de transmitir até o lirismo do paladar, um sentido sem maior prestígio poético: “O lombo era o essencial, e a sua essência era sublime. A faca penetrava nele tão docemente como a alma de uma virgem pura entra no céu. A polpa se abria levemente enfibrada, muito branquinha, desse branco leitoso e doce que têm certas nuvens às quatro e meia da tarde na primavera”.

Ao inimitável sabiá da crônica, agora em bronze, envio deste galho seco o meu saudoso e invejoso pio de coruja por este seu novo livro.

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