Haviam-me prometido pescadas soberbas e robalos deste tamanho, sem exagero; e até espadartes. Passamos o dia no barco e tudo o que matamos foi uma dúzia de humildes canguás. Eles visivelmente se esforçavam para conseguir se prender aos nossos anzóis imensos; assim salvaram a honra desses rios e mangues entre Santos e São Vicente. Em memória do que um historiador presente declarou que o antigo nome de São Vicente era Canguás. Moradores locais negavam, furiosos, mas ele insistia: “Até meados do século XVI, ainda se escrevia — São Vicente, antiga Canguás — em todos os documentos. E sabe por que esse nome? porque se viu que nesses rios só existia um peixe, o canguá”.

Oscar, senhor da Praia Grande, acabou concluindo que a invenção histórica não tinha importância — mas como chegar da pescaria, nós todos, homens grandes e barbudos, com aqueles canguazinhos inocentes? Compramos umas pescadinhas no caminho e chegamos em casa de cabeça erguida. É bela, esta São Vicente, com praias mansas e praias bravas, com mangues e mar aberto. Se não caçamos mais peixe foi porque na maré de lua nova as águas sobem e descem com fúria demais. Porém, caçamos o principal, esse silêncio e essa brisa dos mangues entardecendo, essa garrafa de cachaça que passa de mão em mão. Somos pescadores de sossego e de amizade; pescamos a melancolia altiva da ponte pênsil, mas também a tristeza negra, humilde e longa dessa ponte baixa por onde passa o trenzinho que vai para o litoral sul.

O japonês encosta o barco na margem. Comemos sobre velhas canoas, e o silêncio é bom nessa indolência de beira-rio. A vida é vaga, mansa.... Mas olho o chão. E vejo toda uma horda de minúsculos siris, cada um erguendo no ar uma puã única, mas do tamanho de seu corpo. Com essa patola gigantesca para seu talhe, esse caranguejinho parece um pequeno povo que gasta em armamento toda a sua receita. Ao longo da margem, a terra é toda crivada dos buracos, onde eles se escondem, quando a gente — esse monstro, o homem — avança. Mas a gente se afasta, eles saem dos foxholes e formigam outra vez, puãs no ar, na sua vida de guerra e de fome.

Junto a um tronco, vejo passar uma formiguinha vermelha. Carrega com esforço uma folha grande, caminha penosa, mas implacavelmente. Isto é a vida, essa guerra, essa teimosia obscura e feroz de cada dia. Um instinto sem finalidade além da vida mesma, a vida que se defende e se repete mais uma geração de siris, de formiguinhas vermelhas e de homens, tropeçando com os mesmos enganos, à mesma canseira, a mesma ânsia, avançando com a mesma sinistra obstinação... O melhor é tomar mais uma cachaça e dormir um pouco no bojo da velha canoa. Dormir, largado, como se fosse para todo o sempre.

rubem-braga
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