Fonte: Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria.  Pesquisa, organização e introdução de Guilherme Tauil, Todavia, 2021, pp.116-117. Publicada, originalmente, no Diário Carioca, de 02/02/1954.

Tínhamos que atingir um ponto do mar de onde fosse possível ver a silhueta completa do Pão de Açúcar, à direita da Ilha Rasa. E à esquerda do barco, além da Ilha Redonda, as Tijucas, desanuviadas e distintas. Chegamos, depois de umas duas horas de motor Panther. Estamos a cerca de quatro milhas ao sul do farol. No barco, além de quem vos conta a história, Chico Brito, Pescocinho (por não tê-lo), Noca, um senhor enjoando (por isso, dele, revelamos apenas as iniciais, O. B.) e o timoneiro Braga — este último de Cachoeiro de Itapemirim. Motivo: cardume de dourados. Viemos corricando desde a pedra do Forte e as iscas chegaram intatas. Lanço minha linha de estreante sem grandes esperanças e, de repente, alguma coisa me puxa para fora do barco. Resisto, dou linha, cobro a margem de passeio que lhe dei, o bicho pula um metro em cima da onda (é grande e verde!) e, finalmente, dá o seu último show de valentia, no fundo do barco, levando punhaladas em volta dos olhos, resistindo e morrendo, dando-nos rabanadas na barriga e nas pernas, morrendo e resistindo. Logo em seguida, é o Braga às voltas com o segundo peixe. Repete-se a luta, a ferroada do bicheiro e o dourado número dois é apunhalado aos nossos pés. Chico Brito é senhor desses mares e desses peixes. Fez-se um grande íntimo dos ventos e das correntes marinhas. Salta, diz nomes feios, xinga a tripulação, embarca o peixe, muda as sardinhas do anzol, tudo com autoridade. O mar está azul e as águas, muito límpidas, mostram o fundo abismo de Janaína, onde o risco e a morte têm silêncio de flor e som de cantiga. O sol arde no rosto, nas costas e nas pernas aprazando uma noite de Picrato de Butesin. De repente, vindo por debaixo do barco, maior que o barco (uns três metros e meio), um bicho marrom com a cabeça de martelo, nadando em macio. Ninguém disse nada antes de olhar para Chico Brito. De- pois, os seis, como uns loucos, começaram a xingar o tubarão de tudo o que era nome. O bicho volteou o barco e só de piada deu uma cabeçada no motor de popa. Nessa altura dois dourados comeram nossos anzóis e o tubarão resolve comê-los antes de nos comer em juventude. O seu nado é uma beleza. Uma negaceada do dourado fê-lo dar uma grande virada de piscina — sem botar as mãos. Sua nadadeira, fora d'água, assovia na tona e conduz minha linha. Em seguida, numa deitada de desprezo, corta o arame do meu anzol e passa roçando o barco a um palmo de mim. Cuspo nele. Depois circunda o barco num raio de três metros e vem, de cara, em grande velocidade, em nossa direção e a beleza da investida não deixa ninguém ter medo. Braga se equilibra nos calcanhares e o espera na ponta do bicheiro. Pensei: perdemos um cronista. O bicho leva a ferroada no lombo, dá outra virada de piscina e quer levar o Braga pra ele. No barco, todos são contra. A ponta do bicheiro abriu e o tubarão soltou-se. Chico Brito prepara a espingarda. Vai ser um tiro certo. Vamos chegar aos Marimbás rebocando três metros e meio de tubarão. Mas, nessa altura dos acontecimentos, o grande seláquio resolve cuidar de outros interesses e some a boreste, cortando água, singrando onda com o leque das costas. Voltamos aos dourados. O sol esfria. Parece que saímos do pesqueiro porque a posição das três Tijucas, em relação à Ilha Redonda, já não é a mesma. O vento está ficando úmido. O nosso companheiro O. B. enjoa, coitado, e ressona agarrado no caniço. Voltamos à praia, com oito dourados e uma história de tubarão para contar. 

As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.