Marcel Gautherot fotografando as gregas esculpidas na fachada do Palácio de Mitla, Mèxico, 1936. Foto de Marcel Gautherot/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Para muitos afortunados, dezembro é mês de planejar viagem e zarpar. Nas malas, geralmente vão apetrechos variados que, de tão característicos, denunciam a situação de conquistado descanso em terras alheias, como chapéus, máquinas e roupas destoantes. Às vezes, porém, o turista precisa fingir que não o é. Ser Turista, mas secreto. Foi o que aconteceu no Recife de 1991, como nos conta Otto Lara Resende.
Uma agência local estava oferecendo uma nova modalidade de viagem aos estrangeiros, sempre receosos dos assaltos & afanos brasileiros: o turismo sigiloso. A proposta consistia em um itinerário menos óbvio, com passeios divididos em pequenos grupos, tentando ao máximo não dar bandeira. Pode parecer absurda a ideia se pensarmos em termos práticos: imagine, por exemplo, um alvíssimo prussiano tentando se camuflar na praia de Boa Viagem. Mas alguma resposta precisava surgir frente à crescente e preocupante rapinagem na região – só em dezembro daquele ano uma soma de 10 mil dólares já tinha sido subtraída de turistas europeus. Não se sabe se a proposta vingou, mas Otto a considerou descabida pela natureza essencialmente desconforme do turista – sempre de passagem, mas nunca aderindo à paisagem.
Paulo Mendes Campos, em uma daquelas crônicas de mosaicos de historinhas, retrata um gringo a bordo de um ônibus do Rio de Janeiro em 1951, época em que ainda se viajava com a Kodak a tiracolo. O ônibus partira do Leblon e, em Ipanema, todos os bancos estavam ocupados. Ao subir uma senhora, o turista se levantou “e, com os gestos prolixos de quem não fala a língua do país”, cedeu o seu lugar. Logo adiante, desceu alguém e ele voltou a se sentar. Em Copacabana entrou uma velhinha e o estrangeiro ofereceu o assento. A coisa começou a ficar engraçada: “o homem conseguiu sentar-se de novo e de novo, no Lido, o ônibus foi invadido de moças e senhoras que não achavam lugar”. Dessa vez, o turista olhou para os homens presentes, que permaneceram sentados e indiferentes. A princípio, lutou com sua boa educação própria, mas foi disfarçando, fingindo que não era visto, e lá pela altura do Flamengo já estava perfeitamente à vontade – e sentado. Moral da história: “o estrangeiro se adapta depressa em benefício próprio”.
Adaptar-se era o que desejava Rubem Braga ao visitar um local prazenteiro, de povo humilde, onde sentisse que poderia viver em paz e deixar suas raízes se espalharem sem pressa. Como todos Os turistas, o grupo de Braga falava alto, apontava coisas e ria à toa naquela viagem pelo Chile, na primavera de 1954. A excursão passava por Zapallar, uma aldeia de pescadores “muito pitoresca e muito suja, como toda autêntica aldeia de pescadores do mundo”. Morando há alguns meses no país, a serviço da embaixada do Brasil, o cronista já conhecia bem os trajetos das praias chilenas: “Nada mais doce que andar por esses caminhos entre as flores e árvores imensas e desembocar de repente na praia alegre e limpa”, escreveu.
Ao fim da tarde, hospedaram-se num velho hotel de tábuas rangentes, mas “encerado e limpíssimo”. Lá fora, o vento soprava “um perfume de mar e de eucaliptos”, varrendo a areia. À noite, durante o jantar, Braga sentou-se ao lado de uma discreta e “quase bela” mulher local. Ela partilhou suas memórias de infância em Zapallar, falou com simplicidade do avô, sabia o nome dos pescadores e a história das casas, era “velha amiga do vento, das árvores e do mar”.
Foi quando o cronista compreendeu que, na presença daquela mulher, que sabia “onde se deve mirar o pôr do sol e o nascimento da lua”, era preciso ser discreto, disfarçar um pouco o seu ar de turista e conter a “curiosidade apressada, gulosa, exterior” dos forasteiros. No coração de Braga, tão sensível à paz dos amores e da natureza, brotou uma admiração por aquela mulher essencialmente integrada à praia em que estavam. E então sentiu o que era possível sentir quando amava uma terra, independente da localização no mapa: “vontade não apenas de estar aqui, mas de ser daqui, dono tranquilo de lembranças antigas, sem nenhum deslumbramento de descoberta, mas com a doce, quieta, sensação de estar em casa”.
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Nota do editor: Além de viajar, dezembro é tempo de desejar um bom Natal. É o que queremos para todos os leitores do Portal. Para aproveitar a oportunidade, duas crônicas natalinas do nosso acervo ganharam leituras de Elizama Almeida, pesquisadora da casa: “Para cada um”, de Drummond, e “Mensagem de Natal”, do Carlinhos Oliveira. Não deixe de ouvir!