O espião de Deus
Difícil imaginar, na literatura brasileira de nosso tempo, um escritor que tenha malbaratado o seu talento como fez o cronista e romancista José Carlos Oliveira (1934-1986). Difícil, também, imaginar algum que, mesmo assim, e no breve tempo de sua vida, encerrada aos 51 anos, tenha deixado obra tão apreciável. Dele disse, em sua morte, um confrade avesso a elogios fáceis, ninguém menos do que Rubem Braga: “Foi uma das vocações literárias mais intensas que conheci”. Dela ficou, na avaliação de nosso maior cronista, uma obra “bastante desigual, mas com momentos intensamente iluminados de poesia e outros lancinantes de sofrimento”. Impressionava ainda ao Braga o fato de que Carlinhos Oliveira, como tantos o chamavam, tivesse sido, “ao mesmo tempo, um grande boêmio e um grande trabalhador”, levado por uma pancreatite “em plena luta para entregar em mais um livro a estranha história de sua própria existência".
Estranha talvez seja pouco para qualificar a trajetória de quem nasceu numa família de classe média baixa de Vitória, único filho homem numa prole de oito, e que ainda não chegara aos cinco anos de idade quando o pai, subtenente da Polícia Militar, se matou com uma dose de veneno no café. A infância abafada e quase miserável irá transparecer em muitos de seus escritos, em especial no primeiro romance, marcadamente autobiográfico, O pavão desiludido, que, lançado sem maior ruído em 1972 e jamais reeditado, não teve ainda a atenção que com certeza merece.
Considerados o meio e as condições em que nasceu e foi criado, não espanta que o adolescente Zé Carlos mal tenha esperado por seus 18 anos para se mandar de Vitória, onde seu talento já cintilava na imprensa, e tomado o rumo do Rio de Janeiro, contra a vontade da família, que não voltará a ver até a sua morte, num hospital de Vitória, 33 anos mais tarde.
Na então capital da República, onde chegou de bolsos vazios, José Carlos Oliveira enfrentou duro período de adaptação, tendo por um tempo dividido quarto de pensão ordinária no Catete com dois outros aspirantes à literatura – um deles, o maranhense José Ribamar Ferreira, que haverá de ser um dos melhores poetas de sua geração, com o nome trocado para Ferreira Gullar. Daquele convívio, em que afeto e desavenças se alternavam, ficaram traços em escritos de Carlinhos Oliveira. “Algum dia escreverei, talvez, um livro sobre esta amizade sujeita a chuvas e trovoadas”, prometeu certa vez, sem detalhar o que seria “uma série de divergências irreconciliáveis".
Impetuoso, o jovem escriba capixaba não tardou a abrir espaço na imprensa e a atrair atenções nas rodas literárias. O jornalista e escritor Zuenir Ventura, que chegou ao Rio no final dos anos 1950, já o encontrou instalado e famoso, "enfant gâté" mas também "enfant terrible” dono que era de irreverência incoercível. Ali estava, contou Zuenir numa entrevista, “um intelectual que deslumbrava as rodas e que prometia muito”, “a grande esperança de um grande romancista da geração dele". Seu lado enfant terrible fez de Carlinhos Oliveira também um personagem, cujo comportamento pouco ou nada convencional alimentava falatório na Zona Sul carioca. Certa vez, por exemplo – é ainda Zuenir quem lembra –, seus amores com mulher casada e rica culminaram numa briga em que ele atirou pela janela uma pedra preciosa, para sempre perdida.
É espantoso que José Carlos Oliveira, entregue a uma boemia encharcada de álcool, tenha conseguido destilar nas páginas do Jornal do Brasil, várias vezes por semana, anos a fio, uma prosa de tamanha qualidade literária, na qual transparece uma visão social não menos fina, o que fez dele o cronista de uma geração. “Nunca se alinhou com nenhuma ideologia”, observou Zuenir Ventura, “o que irritou muito a esquerda”, numa quadra da vida nacional em que dos artistas e intelectuais se cobravam engajamentos políticos muito nítidos.
Independente, Carlinhos Oliveira por certo irritou também os conservadores do outro lado, ao desnudar mazelas de uma sociedade resistente a avanços nos costumes. “Não pertenço a nenhuma classe social”, disse ele à jornalista Danusia Barbara em 1981. “Frequento todas, circulo por aí e sou espião de Deus. Tô aqui para saber de tudo que se passa e aprender o máximo sobre o ser humano.”
Leitor apaixonado de Jean-Paul Sartre, dizia-se existencialista, e mais de uma vez se definiu como uma espécie de “psicanalista amador” da sociedade à sua volta. Frequentador da noite, a certa altura não apenas se instalou na varanda do Antonio’s, bar e restaurante de intelectuais e artistas no Leblon, como para lá carregou a sua máquina de escrever. Ali podia ser visto, nos mais improváveis horários, aquele homem baixo, magro, de barbicha e óculos pesados, nem sempre (confessava) de banho tomado, pessoa que, longe de ser bonita, sabia ser encantadora – ou, de uma hora para outra, o contrário disso. “Nada acontece nessa faixa Ipanema-Leblon que eu não saiba”, gabou-se à repórter Norma Couri, em 1977. Foi no Antonio’s que ele concedeu uma bizarra entrevista à amiga Clarice Lispector para a revista Manchete, em 1973, bizarra porque nenhum dos dois abriu a boca: perguntas e respostas por escrito, em papeluchos que iam e vinham.
Seu talento alimentou a expectativa de algo além das crônicas, e a partir de certa altura José Carlos Oliveira começou a ser cobrado também como romancista. Se O pavão desiludido passou praticamente em branco, Terror e êxtase, seis anos mais tarde, não só foi muito bem vendido como inspirou um longa-metragem de mesmo nome, dirigido por Antonio Calmon. No final dos anos 1970, sintetizou assim o seu esforço de artista: “Estou construindo, fragmento por fragmento, o romance balzaquiano da minha geração". Achava que suas crônicas, na verdade, falavam “de uma vida e de um livro só”, do qual eram capítulos. A sua própria vida, claro, que a seu ver “daria uma tragédia grega do subdesenvolvido”. Pretensões à parte, vale a pena mergulhar naquilo que José Carlos Oliveira nos deixou, sejam seus romances, ainda escassamente conhecidos, sejam as milhares de crônicas que ele pingou na imprensa ao longo de mais de vinte anos, muitas das quais capazes de atravessar o tempo e encantar sucessivas gerações de leitores.
Humberto Werneck
1934
“Quando vi o mundo pela primeira vez eu estava nu, com vermes, com perebas e com fome.” (Crônica “O arco-íris”, no Jornal do Brasil de 8-9/8/1971. Com modificações, será também, no ano seguinte, o primeiro capítulo do romance O pavão desiludido.)
1939
“Meu pai foi sempre um retrato de militar sobre a cômoda, e a poeira que recobria sua moldura era talvez o mesmo pó em que estava ele transformado para sempre.” (“Procura do corcundinha”, crônica no vespertino Folha do Povo, de Vitória, em 12/2/ 1952.)
1950
1951
1952
“Num comboio cor de formiga, sentado junto à janela, digo adeus à minha infância e à minha terra natal.” (“Nota aborrecida” – Jornal do Brasil, de 22/11/1963.)
1953
“Você nunca viu uma página tão cheia de vagabundos, hein? Manchete hoje está metida a filme italiano. Mas em compensação, meu amigo, dê um giro pela cidade – e verá que a coisa é muito mais feia na realidade.”
1954
1959
1961
“Ora agressivo, ora suave, vomitava sua solidão, suas dúvidas, raiva, contradições, e com a mesma ênfase descrevia um mulher bonita olhando vitrine em Copacabana.” (Jason Tércio, na biografia Órfão da tempestade, de 1999.)
1962
Do dramaturgo Bráulio Pedroso, no jornal O Estado de S. Paulo: “José Carlos Oliveira pertence, sem favor algum, ao primeiro time de nossos cronistas, trazendo uma contribuição própria, um estilo sem empréstimos, uma temática adequadamente exposta”.
1964
“Malbaratei muitas oportunidades de passar alguns dias em Paris. Fiquei aqui. Não sei visitar cidades: o turismo não me interessa. Mas poucos sabem ir ficando num lugar até pertencer a esse lugar, e eu sei. Qualquer lugar. Aproprio-me das paisagens, do ar, das pessoas, dos assuntos locais, com uma espécie de fervorosa preguiça; não tenho pressa, não observo nada de relance; mergulho na realidade, perco-me nela, depois de certo tempo somos uma só coisa.” (“Paris” – JB, 4/2/1964)
1967
“Faz parte da minha doutrina pessoal o princípio de que escrever é algo tão efêmero quanto existir. Vou largando as minhas páginas pelo caminho, como a lesma vai deixando no canteiro a sua baba.” (“O búzio” – JB, 23/11/1965).
1972
“Você errou no título. Esse título é um desastre. Se o pavão já está desiludido, quem é que vai se interessar?” (Rubem Braga ao autor, que se decepcionara com a fraca repercussão do livro.)
1978
1979
“Uma obra-prima na história da crônica no Brasil”, escrita por “alguém que joga o seu ser inteiro na aventura de viver e descobrir o mistério mais fundo do homem, este girassol com alma de pirata e coração de cambaxirra.” (Arthur da Távola, na revista Fatos & Fotos, de 24/12/1979)
1981
1984
1985
1986
* Katya de Moraes, bibliotecária do Departamento de Literatura, e Rachel Valença, coordenadora. Colaboraram para a elaboração desta cronologia a bibliotecária Jane Leite, a pesquisadora Elizama Almeida, e o editor Humberto Werneck.