Sessenta anos sem Maria

Antônio Maria em Pernambuco, no final dos anos 1930, antes de sua primeira viagem para o Rio de Janeiro. Coleção José Ramos Tinhorão/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Há exatos sessenta anos, em 15 de outubro de 1964, Antônio Maria desobjetivou, como dizia o seu amigo Vinicius de Moraes. Morreu aos 43 anos de um ataque cardíaco, justo onde e quando mais procurou viver: na rua, de madrugada. Não dá para dizer que um homem que tanto escreveu sobre corações foi traído pelo próprio, pois os sinais foram se acumulando, e a luz de emergência que se acendeu com o primeiro infarto, submetendo o cronista a regimes e a um estilo de vida um pouquinho mais comedido, não foi suficiente para evitar o segundo, fulminante.

Em sua memória, preparamos esta homenagem com um recorte pouco usual de suas crônicas, destacando algumas que mencionam São Paulo, aonde o cronista ia com frequência, geralmente a trabalho, oferecendo seus dotes incomuns de polímata às rádios e televisões paulistanas. Em suas crônicas, a cidade aparece mais como um espaço de deleite, com bons restaurantes e amizades calorosas.

Ninguém se espantava em ver Antônio Maria num restaurante do Rio de Janeiro “e, poucas horas depois, de sabê-lo ainda pegando um fim de noite numa boate de São Paulo”, como apontou Paulo Mendes Campos. Depois de quase dois anos percorrendo a rodovia Presidente Dutra com frequência, Maria escreveu o seu Guia prático e sentimental da Rio-São Paulo, contando “as belezas, os perigos e os mistérios dessa estrada comprida”. O tempo médio de uma viagem dessas, a que considerava “o maior prazer de um viciado em automóvel”, era de seis horas, mas Maria levava pouco menos de quatro e meia. Havia quem fizesse em ainda menos tempo, o que o cronista não recomendava primeiro pelo perigo, segundo porque perderia o melhor do passeio: as paradas.

Em Resende, um restaurante sem nome, “à esquerda de quem vai”, era o seu primeiro ponto gastronômico. Ali, comia “um bife delicioso, feito na manteiga, com o molho do próprio sangue servido com ervilhas e arroz”. Muito dado aos encontros glutões, Maria fazia questão de levar os amigos lá, com a recomendação de irem “à cozinha conversar com um cidadão meio atarracado que se chama Oséas”, honesto o suficiente para dizer “se a alcatra está melhor que o filé”.

Depois de Resende, o cronista pisava fundo o acelerador e passava por Queluz, Cruzeiro, Cachoeira Paulista, Lorena, Guaratinguetá, Aparecida e Pindamonhangaba, até frear em Taubaté, “onde sempre é necessário reencher o tanque, ver água, óleo e pneus”. No primeiro posto à direita havia um botequim que servia “as linguiças mais gostosas do mundo, fritas na hora, à vista do freguês”. Um pouco mais adiante, em São José dos Campos, “come-se uma galinha de arroz” com gosto de comida caseira. De lá, é uma reta só para São Paulo, “onde, se alguém nos espera, acontece uma porção de coisas boas”.

Quem esperava Maria em solo paulistano eram seus colegas de profissão, batendo ponto principalmente na recém-inaugurada TV Record. Quando as agendas batiam, a labuta se desdobrava em uma lambança gastronômica. Certa vez, em 1954, Maria levou os amigos Araci de Almeida, Ari Barroso e Paulo Soledade para conhecer A noite do Palepale, uma cantina italiana na rua Barra do Tabagi. Naquela que era “uma verdadeira casa de comida italiana”, comia-se o “mais gostoso cabrito ensopado do mundo”, servido pela própria família do senhor Palepale, “um sobrevivente de dois infartos do miocárdio” que não se entregou à espera da morte numa cama. Veja só…

Os amigos compartilhavam a alegria pelo momento e também uma porção de linguiça calabresa frita, e Ari, que tinha jurado não beber nunca mais, olha com cara de “menino que quer pedir alguma coisa”. Maria o compreende e manda descer uma garrafa de vinho, obviamente italiano. Os pratos vão caindo na mesa “como se fossem castigos”: “galinha à passarinho, cabritos vários, talharins, linguiças, provolone do melhor” e vinho, muito vinho. Araci “está feliz, como há muito tempo não a via”. Paulo “conta histórias de suas idas a Paris”. Ari, no décimo copo, “pergunta se é, de fato, digno da medalha do Mérito Nacional”. “Claro que sim”, responde o cronista, e pede mais quatro medalhas do Mérito ao garçom, uma para cada conviva.

Quando dá uma da manhã, os “gaetaninhos crescidos”, vestindo boina ou boné, lotam a casa de Palepale para assistir à fita de faroeste que a cantina exibia toda noite. E naquela emoção de mocinhos e bandidos, os amigos viraram crianças outra vez: “éramos crianças em tudo, menos no vinho que continuávamos bebendo”, escreveu o cronista. Depois, ao saírem para “continuar a noite de São Paulo”, Maria se sentia “leve, fácil de conduzir”, íntimo de si mesmo. Era essa a importância da amizade em sua vida.

Cerca de uma semana antes de Maria vir a óbito, o parceiro Vinicius de Moraes o questionou, durante uma “noitada de alma aberta”, se podia estar bebendo e comendo daquele jeito. O cronista respondeu que não havia de ser nada, que qualquer dia ia morrer assim mesmo, talvez até fosse Morrer num bar. Quando soube da notícia, Vinicius escreveu uma das mais belas crônicas de despedida da literatura brasileira, disponível agora também em áudio, com a emocionante interpretação do poeta Eucanaã Ferraz. “Eu sabia que seu peito ia explodir um dia, meu Maria”, escreveu Vinicius, “pois por mais forte e largo que fosse, a morte era o seu guia”.