Fonte: Para uma menina com uma flor: 1966. Organização de Eucanaã Ferraz. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, pp. 101-103.
Ouça a crônica de Vinicius de Moraes na voz do poeta Eucanaã Ferraz.
Na morte de Antônio Maria
Aí está, meu Maria... Acabou. Acabou o seu eterno sofrimento por tudo, e acabou o meu sofrimento por sua causa. Na madrugada deste mesmo 15 de outubro em que, em frente aos pinheirais destas montanhas tão queridas, eu me sento à máquina para lhe dar este até-sempre, seu imenso coração, que a vida e a incontinência já haviam uma vez rompido de dentro, como uma flor de sangue, não resistiu mais à sua grande e suicida vocação para morrer.
Acabou, meu Maria. Você pode descansar em sua terra, sem mais amores e sem mais saudades, despojado do fardo de sua carne e bem aconchegado no seu sono. Acabou o desespero com que você tomava conta de tudo o que amava demais: o crescimento harmonioso de seus filhos, o bem-estar de suas mulheres e a terrível sobrevivência de um poeta que foi o seu melhor personagem e o seu maior amigo. Acabou a sua sede, a sua fome, a sua cólera. Acabou a sua dieta. Aqui, parado em frente a estas montanhas onde, há 30 anos atrás, descobri maravilhado que eu tinha uma voz para o canto mais alto da poesia, e para onde, neste mesmo hoje, você deveria chamar porque (dizia o recado) não aguentava mais de saudades — aprendo, sem galicismo e sem espanto, a sua morte. Quando a caseira subiu a alegre ladeirinha que traz ao meu chalé para me chamar ao telefone eram nove da manhã — eu me vesti rápido dizendo comigo mesmo: “É o Maria!”. E ao descer correndo para a pensão fazia planos: “Porei o Maria no quarto de solteiro ao lado, de modo a podermos bater grandes papos e rir muito, como gostamos…”. E ainda a caminho fiquei pensando: “Será que Itatiaia não é muito alto para o coração dele?...”. Mas você, há uma semana — quando pela primeira e última vez estivemos juntos depois de minha chegada da Europa, numa noitada de alma aberta —, me tinha tranquilizado tanto que eu achei melhor não me preocupar. Eu sabia que seu peito ia explodir um dia, meu Maria, pois por mais forte e largo que fosse, a morte era o seu guia.
Outra noite, pelo telefone, ao perguntar eu se você estava cuidando de sua saúde, você me interpelou: “Você tem medo de morrer, Poesia?”. “Medo normal, meu Maria”, respondi. “Pois olhe: eu não tenho nenhum”, retorquiu você sem qualquer bravata na voz. “Só queria que não doesse demais, como na primeira crise. Aquela dor, Poesia, desmoraliza.”
Mas como eu descesse — dizia — para atender à sua chamada, e atravessasse o salão da casa-grande, e entrando na cabine ouvisse (como há catorze anos atrás ouvi a voz materna) a voz paternal de meu sogro que me falava, preparando-me: “Você sabe, Antônio Maria está muito mal…”: e eu instantaneamente soubesse... — justo como naquela época soube também, quando a voz materna, em sinistras espirais metálicas, me disse do Rio para Los Angeles: “Sabe, meu filho, seu pai está muito mal…” — o nosso encontro marcado deu-se numa dimensão nova, entre o mundo e a eternidade: eu aqui; você... onde, meu Maria? — onde?
Ah, que dor! Agora correm-me as lágrimas, e eu choro embaçando a vista do teclado onde escrevo estas palavras que nem sei o que querem dizer…
Há uma semana apenas conversamos tanto, não é, meu Maria? Você ainda não conhecia minha mulher, foi tão carinhoso com ela... Tomamos uma garrafa de Five Stars no Château, depois fomos até o Jirau e terminamos no Bossa Nova. Eu ainda disse: “Você pode estar bebendo e comendo desse jeito?”. “Por que, Poesia? Não há de ser nada.... Qualquer dia eu vou morrer é assim mesmo, num bar…”
Eu só espero que não tenha doído muito, meu Maria. Que tenha sido como eu sempre desejei que fosse: rápido e sem som. Mas é uma pena enorme. Você tinha prometido à minha mulher, a pedido dela, que recomeçaria hoje, nesta quinta-feira do seu recesso, no seu Jornal de Antônio Maria, o seu Romance dos pequenos anúncios, que foi uma de suas melhores invenções jornalísticas e onde eu era personagem cotidiano: você sempre a querer fazer de mim, meu pobre Maria, o herói que eu não sou.
Mas por outro lado, sei lá... Você disse nessa noite, à minha mulher e a mim, que nem podia pensar na ideia de sobreviver às pessoas que mais amava no mundo: sua mãe, seus dois filhos, suas irmãs e este seu poeta. “E Rubem Braga…”, acrescentou você depois, brincando com ternura. “Eu não queria estar aí para ler quanta besteira se ia escrever sobre o Braguinha…”
Não irei ao seu enterro, meu Maria. Daria tudo para ter estado ao seu lado na hora, para lhe dar a mão e recolher seu último olhar de desespero, de maldição para esta vida a que você nunca negou nada e o fez sofrer tanto. Daqui a pouco o sino da casa-grande tocará para o almoço. Verei minha mulher descer, triste de eu lhe ter dito (porque ela dorme ainda, meu Maria...) e de me deixar assim sozinho, sentado à máquina de escrever, com a sua morte enorme dentro de mim.