Guia prático e sentimental da Rio-São Paulo

 

Fonte: Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria.  Pesquisa, organização e introdução de Guilherme Tauil, Todavia, 2021, pp.221-223. Publicada, originalmente, na Manchete, de 30/05/1953.

Ao completar 60 viagens da rodovia Presidente Dutra, gostaria de contar as belezas, os perigos e os mistérios dessa estrada comprida. Há quase dois anos, todas as vezes que São Paulo dá saudade e chama, venho fazendo esse caminho e o considero o maior prazer de um viciado em automóvel. Se a estrada já matou gente, não a evitem por isso. O homem, morredor por excelência, tem morrido tragicamente em todos os caminhos do mar, do céu e da terra. É necessário, porém, saber andar naquela pista estreita. Se a reta tem quase 100 quilômetros, o pneu pode  não ter mais nem um minuto de vida. Se a curva surgiu, de repente, vamos desenhá-la a capricho, ocupando menos da metade do asfalto. Se, depois, o terreno é ondulado, na baixa pode haver um buraco ou um carro enguiçado. Tomados estes cuidados, o motorista deve apegar-se a uma ideia – chegar. O tempo normal de uma viagem tranquila é de seis horas. Mas a tendência de quem dirige é encurtar esse tempo, depois da terceira ida. Vitor Costa, em automóvel Cadillac, já fez em quatro horas e 15 minutos. Eu mesmo, também em Cadillac, consegui quatro horas e 25. Mas o sr. Fernando Chateaubriand, em Jaguar XK120, quando gasta mais de três horas e meia, fica de mau humor o dia inteiro. Nenhum dos leitores deve tentar essas marcas, não só porque estaria viajando perigosamente, como também porque perderia o melhor do passeio: as paradas.

Sábado de noite, a primeira parada dever ser o jantar de Resende. Há um restaurante sem nome, à esquerda de quem vai, antes de chegar à zona residencial dos militares. Ali, come-se um bife delicioso, feito na manteiga, com o molho do próprio sangue e servido com ervilhas e arroz. Levados por mim, João Condé, Odorico Tavares, Rubem Braga, Millôr Fernandes, Reinaldo Dias Leme e Dorival Caymmi já provaram dessa comida e lamberam os beiços. É prudente, porém, ir à cozinha e conversar com um cidadão meio atarracado que se chama Oséas. Ele adora ser consultado sobre a qualidade da carne e diz sempre se a alcatra está melhor que o filé.

Depois de Resende é uma reta só, fascinante, instigando o pé contra o acelerador. Passa por Queluz, Cruzeiro, Cachoeira Paulista, Lorena, Guaratinguetá, Aparecida, Pinda e chega a Taubaté, onde sempre é necessário reencher o tanque, ver água, óleo e pneus. No primeiro posto à direita, há um botequim frequentado por motoristas de caminhões e retirantes nordestinos dos paus de arara. O elemento local ouve conversa e fala com seu “r” oleoso, ótimo para quem tenciona aprender inglês. Comem-se as linguiças mais gostosas do mundo, fritas na hora, à vista do freguês. O caminho que resta para São Paulo não gasta hora e meia, a não ser que haja inverno e madrugada, quando o nevoeiro raras vezes falha e se cola no para-choque do automóvel, obrigando todo trânsito a 30 quilômetros de marcha lenta. Em São José dos Campos, num restaurante ao lado do Posto Parente, come-se uma galinha de arroz que em nada é diferente das galinhas de sua casa. Logo depois, sente-se a passagem de Jacareí, porque mulheres e crianças estão postas à margem da estrada oferecendo os seus famosos biscoitos. Só parei uma vez para essa transação. Depois, passei sem diminuir a marcha e, para não desacreditar de mim, resolvi não acreditar nos biscoitos de Jacareí. O resto é mais uma reta até São Paulo, onde, se alguém nos espera, acontece uma porção de coisas boas.

Só deve ir a São Paulo de automóvel quem vai descansar, quem deixou as preocupações em casa e pode merecer a estrada no que ela sabe de melhor. Quem vai a negócio, quem leva preocupação ou está sujeito a desencantos ao chegar, deve, de preferência, tomar o trem ou o avião. A estrada é para quem está em estado de graça. A escolha dos companheiros também é muito importante. Todos os preparativos devem ser feitos num máximo de sigilo, para evitar que alguém se ofereça como companhia e pôr-nos à vontade para convocar o que houver de melhor em matéria de apetite, sede e conversa. Devem ser evitados aqueles que cochilam, os que mandar fechar os vidros e os que pedem para diminuir a marcha. Dizem que é uma maravilha levar a namorada recente, mas, para essa graça, embora muitos sejam chamados, poucos são os escolhidos. De um jeito ou de outro, a Rio-São Paulo ainda é uma grande inspiradora. Das suas noites, do que se disse e sentiu em suas idas e vindas, nasceram minhas pobres canções.

antonio-maria