15 fev 2023
Guilherme Tauil
Correndo o risco de espantar o leitor que ensaia o samba o ano inteiro, hoje vamos falar de cronistas pouco chegados no Carnaval. Nem é preciso pedir licença para apresentar a turma que prefere o sossego, pois o Bloco do Sofá dispensa a abertura de alas. Para se filiar ao movimento, não é preciso ser, de fato, indiferente à festa – mas pode ser, também. Basta não se deixar contagiar pelo tamborim da avenida, ter certa indisposição preguiçosa, ser fiel a um desejo de conforto constante.
Carlos Drummond de Andrade era desses. Preferia Ficar em casa. Dizia isso desde 1934, quando publicou Brejo das almas, seu segundo livro de poemas. Um deles, espécie de lampejo lisérgico anticarnavalesco, abre assim: “Deus me abandonou/...31 jan 2023
Guilherme Tauil
Em 1916, no Rio de Janeiro, o sambista Donga cantou que, pelo telefone, o chefe da polícia mandava avisar que na Carioca tinha uma roleta para se jogar. Quinze anos depois, Carlos Drummond de Andrade registrou a chegada do telefone automático em Belo Horizonte, numa série de crônicas publicadas no Minas Gerais. Ao leitor de pouca idade, explico: houve um tempo em que as ligações eram mediadas por uma telefonista, sentada em sua cadeirinha na central telefônica, responsável por manualmente conectar duas linhas, num processo que poderia levar horas ou até mesmo o dia todo.
No dia 23 de setembro de 1931, os belo-horizontinos demitiram suas telefonistas e passaram a ligar diretamente uns para os outros com seus telefones de disco...16 jan 2023
Guilherme Tauil
Quinta passada, 12 de janeiro, o patrono do Portal fez aniversário. São 110 anos de Rubem Braga, que segue surpreendendo leitores de todas as gerações com a beleza de sua prosa lírica. O velho Braga, como ele próprio se chamava desde muito jovem, é mesmo o nome mais importante da nossa crônica. Além de ter sido o grande responsável por formatá-la nos moldes que conhecemos bem, foi uma espécie de sol a iluminar a obra de todos os seus colegas, emprestando um pouco de cor à paleta dos cronistas – sobretudo dos que vieram depois.
Foi o caso de Carlinhos Oliveira, 21 anos mais moço, que descobriu com Braga o significado de ser moderno. Antes disso, menino ainda, engatinhando no ofício e só com “as bibliotecas da província atrasadas... 2 jan 2023
Guilherme Tauil
Os pais pediram que o menino fosse dormir cedo, para que pudesse “acordar à hora da passagem do ano”. A julgar pela “insistência da recomendação”, o ano não passaria se o menino não se deitasse. O que seria, francamente, um problemão – e para o mundo todo. Se o ano não virasse, “tudo o que estava para acontecer a partir da meia-noite, bruscamente ficaria retido nas malas, nos pacotes, na escuridão”. Por respeito à humanidade, o garoto acatou. Quer dizer, mais ou menos – ficaria na cama de olhos fechados, igual quando brincava de morto, mas dormir mesmo não dormiria. Só estando acordado seria possível “devassar de vez o mistério da passagem do ano”.
Os adultos mentem muito, sabia. Até mesmo sua mãe, “que...15 dez 2022
Guilherme Tauil
Por gentileza, arrumem um espacinho para mais uma cadeira na mesa do Portal, pois hoje recebemos um reforço há muito aguardado: Carlos Drummond de Andrade é o décimo quinto cronista da nossa escalação. Já na estreia, mais de 50 crônicas à disposição do leitor, além de uma farta linha cronológica e de um belo perfil assinado pelo professor e crítico literário Sérgio Alcides.
Nem todo mundo sabe que Drummond, nosso maior poeta, foi um cronista contumaz, com uma produção jornalística de cerca de seis mil textos espalhados sobretudo em jornais e revistas de Minas e do Rio. Foi ainda aos 18, saído de Itabira para Belo Horizonte, que bateu na porta do Diário de Minas e ofereceu seus serviços. Desde então, seguiu assinando...30 nov 2022
Guilherme Tauil
Antônio Maria pedira ao rapazinho do posto que “fechasse cuidadosamente o capô” do carro. Adiante havia uma longa reta e, “por prazer verdadeiro, muito antes de James Dean”, gostava de correr quando viajava sozinho. “A velocidade de um automóvel ao longo de uma reta é, em si, de um romantismo” que lhe preenchia a alma. Pisava fundo no acelerador, tirava o máximo de seu carro e, no curso da estrada, sentia dominá-lo inteiramente. “Não sei de amigo mais íntimo que um automóvel em alta velocidade”, disse. E mais: “Não sei de sentimento de solidariedade maior entre homem e máquina, máquina e homem, ambos gozando o mesmo bem-estar, ambos expostos a igual perigo”.
Pilotar um automóvel fumegante era qualquer coisa que...16 nov 2022
Guilherme Tauil
Apita o juiz e a bola sai com João do Rio, convidado a visitar o campo do Fluminense num domingo de sol. O tricolor carioca tinha apenas três anos de existência e o futebol, acredite, não era paixão nacional. O campo nas Laranjeiras, “igual e verde como uma larga mesa de bilhar”, estava ainda cheio de pedreiros trabalhando “ativamente na construção das galerias e arquibancadas”. “Moças de vestidos claros”, perfumando “o ambiente com o seu encanto”, e “cavalheiros sportsmen, de calça dobrada e sapatos grossos”, estavam lá para assistir à partida amistosa. Para cada “seis palavras nossas”, os rapazes soltavam três em inglês. Na verdade, todos falavam uma porção de inglês naquela tarde multicor –... 1 nov 2022
Guilherme Tauil
Lima Barreto nunca deu moleza aos donos de jornal – nem aos proprietários abastados, de modo geral. Por conta de suas críticas contundentes e de caricaturas debochadas de poderosos, esteve sempre indisposto com a dita imprensa burguesa. Também por isso, colaborou a vida toda com o que hoje chamaríamos de “imprensa alternativa” – pequenos jornais de bairro, periódicos de circulação curta, páginas universitárias. Mas não só: como escritor relevante de seu tempo, passou pelos principais veículos do Rio de Janeiro, onde desovou cerca de 440 crônicas. Nas páginas de revistas e jornais, publicou também artigos, reportagens, um soneto (o único de sua lavra) e, é claro, romances no formato de folhetim. É impossível, portanto,...17 out 2022
Guilherme Tauil
Dizem que não existe ateu quando o avião treme. Se depender da senhora que Paulo Mendes Campos flagrou Anteontem, em um avião de Belo Horizonte para o Rio, não existe mesmo. Ao contrário de seu filho de 12 anos, que tinha “os olhos abertos da alegria infantil”, ela estava “com os olhos esbugalhados de pânico” e o coração apertado pelo tempo instável, pelas nuvens carregadas com pinta de aguaceiro. Quando o avião se meteu “no espesso nevoeiro”, a mãe “tirou da bolsa dois poderosos terços, estendeu um ao garoto” e imediatamente começou “a desfiar o outro”. Inabalável, a criança recusou o rosário, alegando que um era suficiente, mas sofreu a censura materna: “Não, menino, você reza pelo motor direito, que...30 set 2022
Guilherme Tauil
Rachel de Queiroz estava sossegada em seu canto quando o rádio começou uma homenagem ao compositor Noel Rosa. Noel, prodígio do samba que viveu só 26 anos, “não tinha queixo, não tinha dinheiro, não tinha saúde”. Em outras palavras, “era feio, era pobre e era tísico. Matéria-prima especial para poeta, em verdade” – afinal, a “figura de poeta que concebemos e cultuamos é aquele que anda mendigando uma média, e põe pela boca os pulmões junto com a alma”. Algum desavisado poderia dizer que “Noel não era poeta, era sambista”. Ora, pois fique sabendo: “Todo legítimo sambista é poeta, enquanto nem todo poeta é sambista, isso sim”. E o “autêntico poeta que não é sambista” certamente trocaria “sua lira...15 set 2022
Guilherme Tauil
Hoje é dia de festa. Sérgio Porto, ou melhor, Stanislaw Ponte Preta, o heterônimo que adotou, é o décimo quarto cronista da nossa escalação do Portal. O criador de alguns personagens que ainda hoje habitam o imaginário brasileiro chega com uma pequena amostra de sua inventividade ímpar e de seu estilo absolutamente livre em 14 textos selecionados, que vão do humor escrachado à fina melancolia da memória.
Muito bem acompanhado, o cronista estreia com o reforço vocal do músico Bruno Cosentino, que gravou uma leitura de “Casa demolida”, uma das mais belas crônicas de sua lavra, e da caneta de Sérgio Augusto, que assina um perfil biográfico saboroso e completinho: do início da labuta na imprensa, pelas mãos do tio e crítico...31 ago 2022
Guilherme Tauil
De manhã cedo, no compasso preguiçoso do raiar do dia, Rubem Braga botou a chaleira no fogo para fazer café e abriu a porta do apartamento para recolher o pãozinho costumeiro, deixado pelo padeiro. Mas não tinha nada lá. No mesmo instante, lembrou-se “de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a ‘greve do pão dormido’” – não muito bem uma greve, mas “um locaute, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno” achando que “obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido” conseguiriam não sei o quê do governo.
O cronista tomou seu café com pão amanhecido, “que não é tão ruim assim”, e recordou-se de “um homem modesto” que conheceu. Toda manhã, quando ia deixar o pão...15 ago 2022
Guilherme Tauil
No fim da tarde, depois de passar o dia trabalhando em uma reportagem, Rubem Braga retornou ao apartamento. Era mais um “homem só nesta cidade de São Paulo”. Ligou para dois colegas, ninguém atendeu. Procurou pelo seu caderno de endereços, ou mesmo por uma lista telefônica, e nada. O jeito era sair por conta própria, “sem programa, pelas calçadas formigantes” daquele começo de noite paulistana.
Num “desses cafés movimentados da avenida São João”, O aventureiro entrou e pediu um pastel feito na hora, com os quais costumava, em outros tempos, enganar a fome nas “noites frias, solitárias e sem dinheiro”. Para acompanhar, uma batida. E depois “um sanduíche e mais um pastel e um café”. Saciado, o cronista retomou... 1 ago 2022
Guilherme Tauil
Em Itapuã, bem em frente à Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, não muito distante da lagoa escura do Abaeté, está a Praça Caymmi. O local foi batizado, é claro, em homenagem ao mais célebre compositor da Bahia, que cantou sua terra e seu povo como ninguém. Felizmente, Dorival ganhou as flores em vida, como pede o samba, e pôde estar presente na festa de inauguração da própria praça, em 1953.
Além de toda a patota política local, havia uma orquestra com piano e uma porção de artistas, locutores de rádio, jornalistas. Em volta do palco, “povo, povo, povo”, anotou Rubem Braga, que, ao lado de Antônio Maria, também assistia à cerimônia. No alto, “entre nuvens brancas tangidas pelo vento, imensa e solitária, a...18 jul 2022
Guilherme Tauil
Rachel de Queiroz conheceu Portugal de olhos fechados. Não tinha mapa nem placa que indicasse que aquele “rio tranquilo, muito largo e com pedras à margem”, por onde ia de barco, fosse português – “mas que era Portugal, não tinha dúvida”. Aos poucos, “uma cidade ou aldeia com casas antigas, abarracadas, subindo um morro”, foi se revelando. Eram tantos pomares que “o rio se afundava entre as árvores e se virava num riachinho à toa”. Daí, como acontece em muita História de sonho, quando a realidade empresta um pouco da fantasia do onírico, de repente “já não tinha riachinho, nem barco, nem nada”. Estava era dentro de uma casa, numa sala “com móveis pesados de talha” e “cortinas vermelhas de veludo”, habitada...15 jun 2022
Guilherme Tauil
“Estou convencido que nessa coisa de pintura a gente de vez em quando deve ficar uns tempos sem ver nada”, e aí, um dia à toa, “como quem vai matar meia hora antes de ir para o escritório”, entrar em um Salão “com os olhos inocentes, distraídos” e, sem se importar com autoria e escolas, deixar que “o sentimento da gente vagabundeie” pela exposição de arte.
O entusiasmo por atravessar uma galeria num “passeio vadio, sem catálogo”, é de Rubem Braga, cujo gosto pelas artes plásticas se evidencia em todo o seu trabalho – tanto na literatura, com crônicas que revelam grande sensibilidade artística, quanto no jornalismo, com pitacos analíticos em artigos, perfis e entrevistas com diversos pintores. Uma farta seleta...31 mai 2022
Guilherme Tauil
Eram três as coisas pelas quais Clarice Lispector vivia: amar os outros, escrever e criar seus filhos. As três experiências eram seu norte. Amar os outros, como sabem os bem-aventurados, é uma disposição tão vasta que incluía até o perdão para ela mesma, “com o que sobra”. Escrever, uma vocação constantemente aperfeiçoada pela “vida se vivendo em nós e ao redor de nós”, era seu “domínio sobre o mundo”. Quanto à maternidade, que escolheu viver de caso pensado, era um remédio para a solidão: “Se eu não fosse mãe, seria sozinha no mundo”, disse, embora ciente de que um dia seus dois meninos abririam “as asas para o voo necessário”. Afinal, não é segredo que não criamos “os filhos para a gente, nós...16 mai 2022
Guilherme Tauil
Maio, você sabe, é o mês das noivas. É possível que a tradição tenha sido importada do hemisfério de cima, onde a primavera está em seu auge, rebentando em flores e cores. Nada mais adequado para uma festa de casamento. Outros apontam uma provável origem no cristianismo, que dedica o mês à devoção de Maria, mãe de Jesus e, por extensão, de um mundaréu de gente. A ideia um pouco antiga de que casamento está relacionado à maternidade seria a justificativa. Seja qual for a razão, convencionou-se que maio é o mês dos casamentos – embora, no Brasil, dezembro seja o período em que mais se celebra a junção de panos.
A filha de Antônio Maria não tinha idade para saber de nada disso quando entrou no escritório do pai com... 2 mai 2022
Guilherme Tauil
O escritor Otto Lara Resende nasceu em São João del-Rei, Minas Gerais, em primeiro de maio de 1922. Tornou-se agora, portanto, um centenário. Para a celebração do marco, seria justo destacar sua verve de ficcionista obcecado – passando por títulos como Boca do inferno e O braço direito, que só mais recentemente receberam o devido reconhecimento –, sua pena fina de jornalista, sempre na justa medida da linguagem clara e precisa, e sua devoção à epistolografia – Otto foi um missivista tão dedicado que até virou selo dos Correios em 1994. Não por menos, o volume de sua correspondência é comparável somente à de Mário de Andrade.
Incapazes de dar conta de tudo isso, escolhemos três historinhas de amigos...14 abr 2022
Guilherme Tauil
Há escritores que fazem livros como casas. Erguem uma obra monumental, capaz de se sustentar por força própria, e fica. O cronista de jornal, porém, é “como o cigano que toda noite arma sua tenda e pela manhã a desmancha, e vai”. As palavras são de Rubem Braga, um de nossos mais notórios ciganos, que fez e desfez sua tenda na imprensa durante quase toda a vida.
A crônica, como se sabe, nasceu do encontro entre o jornalismo e a literatura. Na definição graciosa de Manuel António Pina, poeta e cronista português, trata-se de “jornalismo com saudades da literatura e literatura com remorsos de ser jornalismo”. Sua origem nos remete ao rés-do-chão do jornal, bem no rodapé da página, num espaço que os franceses tratavam de...