Pássaros, Quixadá-CE, 1997. Foto de Eduardo Simões. Arquivo Rachel de Queiroz/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Pio era o nome de um pintinho que os filhos de Paulo Mendes Campos compraram na feira. Diferente de seus antecessores, o bichinho superou a sina da vida breve graças a uma vizinha que entendia “da sobrevivência de pinto de feira em apartamento”. Mesmo assim, é melhor avisar antes que A verdadeira história de Pio não é daquelas de final feliz. Já de pequeno, Pio “mostrou-se um pinto meio esquisito, achegado aos seres humanos e danado de andejo”. Neurótico, piava a todo tempo, “como se o enervasse a passagem das horas”.
Quando a família se mudou de casa, a ave “passou dois dias subindo e descendo a escada, piando, piando, entre as pernas dos carregadores”. Essa atitude demasiado humana fez com que seu prestígio aumentasse e fosse elevada à condição de gente, “assumindo um ar muito à vontade e presumido de bípede empenado”. Mas, com o tempo, as crianças inventaram de pedir um cachorro. Paulo acedeu, e já aborrecido com a arrogância despropositada de Pio, exigiu que ele fosse extraditado em troca.
Assim, o pintinho foi doado a um amigo do cronista e passou a habitar uma casa, com quintal. Mesmo na adolescência, “quase galo, branco e belo”, continuava “extravagante e presunçoso”. Não gostava do terreiro e, sempre de peito estufado, preferia “desfilar na sala ou na varanda”, “chamando a atenção para a sua figura”, que julgava irresistível. Como nunca tinha visto outro semelhante, “acreditava-se o único ente da sua raça, superior e absoluto”.
O amigo, “embora achasse graça na doidice de Pio”, também acabou saturado. O galo seguiu, então, para seu novo endereço: a famosa cobertura de Rubem Braga, “que sempre foi bom receptador de aves desajustadas”. No décimo terceiro andar de um edifício, em pleno céu de Ipanema, o terraço de Braga era famoso por abrigar um viçoso jardim desenhado por Burle Max. Lá, toda sorte de vegetal florescia, para a ira do nosso galináceo que, “insolente diante da natureza”, fez estragos na horta, desenterrou sementeiras e estraçalhou pés de couve.
A princípio, Braga também achou o galo espirituoso e impediu que a cozinheira o servisse ao molho de cabidela. Mas logo ficou igualmente cheio, “dando Pio a um jardineiro português, possuidor de farto galinheiro”. Antes de se misturar à multidão, puseram o bicho diante de um espelho, na esperança de que no reflexo descobrisse o outro, “o irmão que devemos amar como a nós mesmos”. Durante meio minuto, Pio encarou sua imagem estupefato, mas depois deu as costas e se foi. Único galo do mundo, era “dono de uma verdade que o inflava da crista sanguínea ao facho da cauda”. Mal ingressou no cercado, matou três galinhas a bicadas. E depois foi piar na panela do português.
Mais belo, porém não menos triste, é O caso dos bem-te-vis apaixonados que Rachel de Queiroz avistou: “voavam e pousavam, naquela primeira fase de amor de passarinho”, “entre o céu claro e a copa mais alta das árvores” – ou melhor, no alto dos postes e em meio aos fios elétricos, pois essa história de amor se passa numa estação “abastecedora da rede aérea da Central do Brasil”, no Rio de Janeiro.
O poleiro lírico dos passarinhos era um emaranhado de fios. E foi ali mesmo, naquela confrontação de cabos, que trocaram o primeiro beijo. Acontece que, “cada um pousado no seu fio condutor de 44 mil volts”, a carícia de bicos gerou um curto-circuito. “Passando pela frágil cadeia dos seus corpos, a terrífica corrente os eletrocutou” e paralisou, durante quatro horas, toda a frota de trens elétricos da Central. Por uma bitoca de bem-te-vis, meio milhão de pessoas não puderam chegar ao trabalho. Só mesmo Helena e Páris, cujo beijo “desencadeou o lançamento de mil navios e causou a guerra de Troia”, estão à altura daquele casal emplumado.
Falando em par de passarinho, Antônio Maria recebia diariamente a visita de dois canarinhos-da-terra num galho de acácia, bem em frente de sua janela. A princípio, pensou que fossem um casal “em começo de caso sentimental”. Mas, observando-os melhor, viu que não: os dois machinhos conversadores eram apenas colegas. Sempre depois das duas, levavam “horas a fio conversando, contando coisas, passando o tempo”. De vez em quando, um levantava a asa e o outro coçava – “a única atitude mais ou menos suspeita, nessa amizade de passarinho”.
Os canários deviam ter algum assunto preferido, pensou o cronista. “Talvez seja literatura, talvez seja música”, não sabia dizer. Faziam questão do isolamento. Toda vez que algum sanhaço pousava na árvore, eles se olhavam, “como que se consultando”, e voavam para longe. Mesmo quando o intruso era também um canarinho, davam o fora igual, demonstrando que não estavam para pagode. “Tenho quase certeza de que se trata de uma dupla”, como Alvarenga & Ranchinho, escreveu Maria, “mas também desconfio de que um deles é o Vinicius de Moraes dos canários. O outro – quem sabe? – é possível que seja João Cabral de Melo Neto”.
Certo dia, aprontando-se para começar a batucada na máquina de escrever, o cronista foi surpreendido pelos canários no parapeito da janela, e não na árvore, como de costume. Nada fizeram em relação àquele homem enorme em movimento, como se sua presença fosse já amiga, ou “tão desimportante que não merecesse a fuga”. Estavam, porém, mais inquietos: “davam pulinhos, cochichavam, metiam as cabecinhas embaixo das asas”, fazendo trejeitos variados, com certa atitude “de quem está contando aventuras galantes”. Experiente no assunto, Maria não se conteve e gritou da cadeira: “Falando mal das canarinhas, hein?”.
E parece que era mesmo o caso, porque os dois ainda tentaram disfarçar, mas logo “sumiram num voo reto para outra árvore defronte. Tinham sido flagrados em maledicência”.