No princípio do ano, para amenizar o reinício das aulas, as crianças compraram um pinto na feira. Deram-lhe o nome de Pio. Todos que o antecederam tinham morrido prematuros, mas dessa vez residia no edifício uma senhora que entendia da sobrevivência de pinto de feira em apartamento. Instruídas por ela, as crianças conseguiram manter acesa a faísca da vida dentro de Pio. Já de pequeno, mostrou-se um pinto meio esquisito, achegado aos seres humanos e danado de andejo. Piava com monotonia os segundos todos do tempo, como se o enervasse a passagem das horas.
Em mudança de casa, passou dois dias subindo e descendo a escada, piando, piando, entre as pernas dos carregadores. Seu prestígio cresceu com esse episódio; era tratado como gente e orgulhava-se disso, assumindo um ar muito à vontade e presumido de bípede empenado.
Mas acabou me aborrecendo. Como as crianças tinham atingido a irremovível crise de querer um cachorrinho, acabei acedendo, mas exigindo a extradição de Pio para a casa que o Zanine estava construindo na Barra da Tijuca.
Meses depois, ao visitar o amigo, Pio já era quase galo, branco e belo, mas extravagante e presunçoso. Indiferente ao terreiro, preferia desfilar na sala ou na varanda, misturando-se às pessoas, peito estufado, chamando a atenção para a sua figura, que ele julgava irresistível. Mais algum tempo, virou galo mesmo, e aí não demorou a revelar os indícios da neurose que o agitava. Pio nunca tinha visto em sua vida um outro ser galináceo. Acreditava-se o único ente da sua raça, superior e absoluto. Firmado nessa fé carismática, deu para agredir os homens. Como estes se defendiam com a ponta do sapato, mudou de tática, bicando-lhes à traição a barriga da perna. Só respeitava o próprio Zanine, a quem não tinha afeição, mas considerava um aliado no combate contra o mundo: seguia o novo dono por todos os cantos, não como um cão humilde, mas com a importância de um chefe de gabinete a seguir o ministro.
Zanine, como eu mesmo, embora achasse graça na doidice de Pio, acabou saturado, dando o boboca de presente ao poeta Rubem Braga, que sempre foi bom receptador de aves desajustadas. Já se sabe, o Braga é um fazendeiro do ar, morando entre hortaliças e arbustos frutíferos no décimo terceiro andar de um edifício em Ipanema.
Insolente diante da natureza, Pio fez estragos na horta, desenterrou sementeiras, estraçalhou as couves, dando-se ainda à petulância de aborrecer, com relativo escândalo, a filha da cozinheira. Também o Braga, a princípio, achando graça, foi complacente, impedindo que a cozinheira transformasse o doidinho em galo ao molho de cabidela. Mas acabou igualmente cheio, dando Pio a um jardineiro português, possuidor de farto galinheiro. Antes, contudo, o galo foi colocado diante de um espelho, na esperança de que descobrisse o outro, o próximo, o irmão que devemos amar como a nós mesmos. Persistindo em sua neurose, Pio não quis saber da realidade: durante meio minuto encarou a imagem com estupefação, deu-lhe as costas e se foi, único de sua espécie, dono de uma verdade que o inflava da crista sanguínea ao facho da cauda.
E enfim chegou a hora do galinheiro. Pio passaria a viver uma vida normal dentro da comunidade, encontrando na força do amor a salvação. Pois o bestalhão, mal ingressou em seu harém, matou a bicadas três galinhas sinceras. E o português o comeu.