Vinicius de Moraes e Dorival Caymmi, provavelmente na década de 1970. Foto de David Zingg/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Nas noites cariocas, Antônio Maria era famoso por sobretudo duas características: seu talento incomparável de criador e sua disposição para uma boa briga. Um temperamento meio inflamado era capaz de mobilizar com certa facilidade os seus cento e vinte quilos, espalhados por um metro e oitenta e dois de altura. “Sou um homem de briga, com pausas de poesia mal compensada”, descreveu-se em crônica de 1958.
Com uma longa lista de desafetos, protagonizou vários episódios de pugilato. Certa vez, Maria e o compositor Ronaldo Bôscoli, que nunca esconderam o desprezo mútuo que sentiam, se estranharam na boate Little Club. Os dois só não chegaram às vias de fato graças à inusitada intervenção do produtor Aloysio de Oliveira que, diante da iminente tragédia, apelou para o escatológico: ali mesmo, com a mira no curto espaço que ainda havia entre os boxeadores, pôs-se a urinar no chão, ganhando um distanciamento forçado. Não fosse tamanho comprometimento com a paz, essa seria mais uma nota na imprensa sobre uma briga de Maria.
Ao mesmo tempo em que o cronista gostava de espinafrar os adversários, cometia imensos gestos de amor e candura com os amigos. Celebrava seus afetos publicamente, seja em mesas de mar, seja nas colunas de jornal. Para dar uma medida do carinho de Maria, hoje destacamos três dos maiores representantes de seu vasto rol de amizades: Dorival Caymmi, Vinicius de Moraes e Aracy de Almeida, todos merecedores de homenagens literárias, tendo figurado em mais de uma crônica cada.
O primeiro a entrar na história foi Dorival, que Maria conheceu durante sua primeira ida ao Rio de Janeiro, com 19 anos. Bem mais tarde, em 1953, quando Caymmi foi homenageado como nome de praça em Itapuã, o cronista escreveu algumas palavras emocionadas: “São elas para meu companheiro e meu irmão, para meu poeta e meu cantor, o suave baiano Dorival Caymmi, cujo nome, num magnífico gesto dos pescadores, acaba de ser escrito nesta praça”. Em seu Discurso a Caymmi, lido em microfone chiado na solenidade da inauguração, transparece a importância daquela amizade para ele: “Deixa que me louve por tê-lo perto, quando necessito de ti, de tua inigualável cordura, para repousar de todos os meus cansaços, assim como repousam os marinheiros cansados nas enseadas do silêncio e da tranquilidade”, pois muitas vezes tinha ido “buscar em tua palavra e em teu silêncio a calma e o destemor para continuar vivo”.
De tão próximo, Maria praticamente integrou a família Caymmi. Era comum aparecer sem aviso depois do jantar para filar uma boia requentada. “Chegava na cozinha, cumprimentava minha mulher – ‘que é que tem pra jantar, minha Stella?’ –, abria a geladeira, pegava aquele feijão virado, um pedaço de filé, uma cervejinha e aí se sentia em casa”, relembrou Caymmi à imprensa quando o amigo morreu, em 1964.
Em 1950, quando Vinicius de Moraes retornou de Los Angeles, onde atuava como vice-cônsul, em 1950, trouxe um enorme carregamento de uísque. Sua casa vivia aberta e Maria foi um dos muitos que passaram a frequentá-la. Ficaram amigos e nunca mais se separaram. “Poeta, violeiro e pessoa mansa”, escreveu o cronista sobre o poeta, “dizem que sua presença descansa os outros”. “Gosta da noite e prefere assisti-la de olhos abertos”, mas depois de dormir “não há acontecimento, pessoa, fúria da natureza ou banda de música que o tire da cama”. É capaz de todas as fraquezas, “de todos os erros, desde que seja mantida, em forma de lealdade, a grande e íntima solidariedade que dedica ao próximo”. Quando está sério e assobiando, “alguma coisa deverá acontecer daí a pouco em relação ao estado civil, seu e dos outros”. É graciosamente gago nas três línguas que fala, caminha “meio adernado para a direita” com um andar de beque reserva, não usa relógio e, “haja o que houver, é incapaz de perguntar que horas são”. Acima de tudo e antes de mais nada, Vinicius “acredita nas virtudes humanas que tornam os homens iguais aos deuses”. Juntos, compuseram algumas canções, desbravaram muitas estradas, tornaram-se compadres e juraram nunca fazer ginástica.
Aracy, a intérprete definitiva de Noel Rosa, ficou amiga de Antônio Maria tão logo ele começou a frequentar o círculo artístico de rádios e boates do Rio, no fim da década de 1940. Desbocada, especialista em palavrões e com gírias da barra pesada em escala industrial – “Eu sou a maior fuleiragem que existe”, declarou certa vez –, ela era uma leitora dedicada do Velho Testamento e “uma das pessoas mais doces deste mundo”, segundo o cronista.
Depois de retornar de Um giro com Aracy, Maria escreveu sobre a velha amiga: “Senta-se em cima de uma perna, como sempre gostou de sentar-se e, como sempre, puxa muito o vestido para cobrir os joelhos”. Gostam de falar sobre o passado, como quando passeavam “com Caymmi, nas madrugadas de São Paulo”, e quando saíam “para procurar o poeta Vinicius, perdido na madrugada, pelos bares da beira-mar”, sempre “inventando histórias para esticar a noite”. “Meu Maria”, concluiu a amiga, “nós temos perturbado o silêncio de muita gente por aí”.
Certa vez, andando de mãos dadas, os dois pararam no bar do Gigi, onde tocava um pianista. De sua mesa, Aracy começou a cantarolar baixinho, e aos poucos foi ganhando a atenção geral. O bar inteiro ficou em silêncio para ouvi-la, até que ela se levantou e, com os braços abertos, cantou os sambas de Noel. Depois dos muitos aplausos apoteóticos, já com o “fresco e leve ar da manhã”, os dois saíram à procura de um táxi. Foram juntos “sem a menor vontade de recolher, falando de gentes, coisas e ternuras que não se repetem mais”. Descendo do carro, Aracy se despediu do amigo: “Meu Maria, nós ainda vamos perturbar muito silêncio por aí”.