Fonte: Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria.  Pesquisa, organização e introdução de Guilherme Tauil, Todavia, 2021, pp. 230-231. Publicada, originalmente, em O Globo de 19/05/1959.

Aqui está a velha amiga, depois de um tempo enorme. Senta-se em cima de uma perna, como sempre gostou de sentar-se e, como sempre, puxa muito o vestido para cobrir os joelhos. Fala de uma porção de eras que não voltarão jamais. Quando passeávamos, com Caymmi, nas madrugadas de São Paulo. Quando comíamos empadas em sua casa, depois do futebol, a ouvir tangos argentinos. Quando passeávamos a noite inteira no Casablanca, conversando com Evaldo Rui, que era um santo. Quando viajamos de trem noturno, eu, ela e Ari Barroso, inventando histórias para esticar a noite. Quando íamos comer cabrito e beber vinho, na Barra Funda. Quando saíamos para procurar o poeta Vinicius, perdido na madrugada, pelos bares da beira-mar. Tudo isto para, depois, chegar a uma conclusão:

— Meu Maria, nós temos perturbado o silêncio de muita gente por aí afora.

Minha querida Aracy de Almeida, leitora diária do Velho Testamento, tornou-se uma das pessoas mais doces deste mundo. Ama a todos, ajuda a uma infinidade de pessoas e tomou duas crianças para criar. Uma menina, Odete, e um menino, Vicente, a quem chama de Monsieur Vicente.

— Já pensou a gente criar um menino chamado Vicente? – diz-me muito a sério.

Vamos para a rua. Levo-a pela mão. Paramos para comer no Petit Club e, depois, descendo a pé, fomos sentar no bar do Gigi. Aí começou a parte mais emocionante do nosso encontro. Começou a cantar, a princípio, baixinho. Depois, com Chuca-Chuca ao piano, foi desfilando a valer seu grande repertório. O bar inteiro em silêncio. Até os estrangeiros, que eram muitos e não tinham nada a ver com Vila Isabel, ouviam, extasiados. A plateia batia palmas e quase todos vinham beijá-la. Mocinhas da nova geração viam-na pela primeira vez e, de uma delas, escorreram lágrimas. O velho centroavante Caxambu veio de lá, de peito opresso, sem poder falar, e caiu-lhe nos braços. O italiano Pierluigi d’Ecclesia sorria siderado e procurava explicar que não havia visto nada igual desde que chegou. Era Aracy em pé, com os braços abertos, a dizer a todo o peito: “Eu sei por onde passo/ Sei tudo o que faço/ Paixão não me aniquila”. Já era muito tarde quando saímos à procura de um táxi. Aracy estava feliz. Gabava-se de sua saúde e gabava o velho Baltazar, seu pai, que só foi morrer aos 94 anos, assim mesmo atropelado por um caminhão. Fresco e leve o ar da manhã. Viemos rodando sem a menor vontade de recolher, falando de gentes, coisas e ternuras que não se repetem mais. A frase da despedida foi esta:

— Meu Maria, nós ainda vamos perturbar muito silêncio por aí.

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