Como são Francisco de Assis

 

Fonte: Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria. Pesquisa, organização e introdução de Guilherme Tauil,Todavia, 2021, pp. 244-246. Publicada, originalmente, em O Globo, de 17/12/1958.

Após muitos anos de ausência, senti falta de uns velhos amigos, íntimos confidentes de outras épocas: os passarinhos da Vitor Costa. Privava com eles na rua Bolívar, quando viviam em menos espaço e não eram tantos. 

Cheguei numa hora tranquila da tarde. Não havia ninguém a não ser um tratador sonolento que, por sua sonolência, pouco se estava incomodando com o que eu perguntasse ou ouvisse dessas criaturas tão melhores que eu. Estavam limpos e felizes. Falavam uns com os outros, creio que de assuntos políticos. A cacatua, por exemplo, estava de cenho franzido, como se tivesse a resolver o caso da Aeronáutica. Não lhe dei importância, porque de aeronáutica e política, mesmo na versão mais inocente das aves, quanto menos souber, melhor. 

Esta coleção de Vitor Costa, segundo me dizem, é a segunda do mundo. Um americano já ofereceu 200 mil dólares por ela – em português, 28 milhões. Aqui aportam estrangeiros de todo o mundo. Uns vêm especialmente para isto, porque a fama destas gaiolas chegou ao Afeganistão ou às ilhas da Polinésia. Quanto a mim, não sou um maníaco. Como um são Francisco de Assis (menos virtuoso, é claro), pergunto deles e de mim, porque as lições dos pássaros são de paz e amor.

Minha primeira entrevistada é a ave-do-paraíso. De sua vida, sei que veio da Indonésia e é a única do Brasil. De mim, ela deve saber tudo ou, ao menos, a versão dos colunistas. Sou um homem de briga, com pausas de poesia mal compensada. Que bonito este bicho! A cabeça preta (no que difere de Di Cavalcanti), o pescoço verde e essas longas egretes, azuis e cor-de-rosa. Confio-lhe um segredo e a ave-do-paraíso me diz gravemente: “Juízo”. Achei que era uma censura. Passei a outra gaiola: a do Mainard. Com este, todo respeito é pouco. Pássaro hindu e, como todo hindu, deve saber de grandes macetes. Nossa conversa foi difícil porque tanto quanto seu português é nenhum, meu inglês pouco passa do good night. Engraçado, o Mainard. Fala mesmo. Um inglês assotacado, assim como o do meu amigo Rubem Braga. Admiro-lhe as cores, preto com as bochechas vermelhas e uma moldura amarela em volta da cabeça. Diz-me, nas despedidas:

Please, open the door!

E explica que precisa ir embora. Lembro-lhe que a fuga seria um erro. Destas gaiolas confortáveis, outros já se escafederam e voltaram, dias depois, desencantados com a vida lá fora. Aqui o mamão é farto, enquanto nas quitandas mais barateiras, um quilo de mamão está por oitenta cruzeiros. Não me dá resposta, com a sua suficiência hindu, e deixe-o, afinal, para ir ao encontro do Príncipe de Gales. Este é inabordável. Não me arriscaria a contar-lhe os meus desaires. Há cinco Príncipes de Gales no mundo inteiro, inclusive o ilustre marido da sra. Simpson. São todos convencidíssimos. Coitado. É parte de uma raça extinta. A última Princesa de Gales morreu numa gaiola, em Chelsea, Londres. Que canário maravilhoso você, Príncipe de Gales! Enorme! Farto em suas penas amarelas. Os dois olhos negros, como duas cabeças de alfinete, lá no fundo da plumagem. Deve ver pouco e, por isso, não se apercebe que sua raça vai terminar ali, sem continuação de filhos e netos. Se consentisse casar-se com uma canarinha-da-terra, ainda bem. Teria filhotes cantadores e brigões. Como eram os das gaiolas do meu avô, Rodolpho Araújo – o homem que mais amou os canários-da-terra no Brasil. Trocava beijos com os mais valente, antes e depois de cada bulha. Pouco simpático o Príncipe de Gales. Não serve, hoje, para o meu caso. Mil vezes ir trocar ideias com os faisões, as cacatuas, os periquitos da Austrália, que são muitos e não se portam com emproamento. Aí sim, a conversa foi fácil e animada. Cada um disse o que bem queria, sem a menor cerimônia. Um pouco atrapalhada a entrevista com o rouxinol-do-japão, não por ser rouxinol (porque conversa de rouxinol todo mundo entende), mas linguagem de japonês é que são elas. Era uma tarde de nuvens pesadas sobre a Lagoa Rodrigo de Freitas. As luzes da gaiolaria iam acender-se. Saí, levando a confidência com que tentei interessar a ave-do-paraíso e, pela calçada, fui andando em vão, cada vez mais preso ao mesmo lugar, à mesma alegria, ao universo à parte, que, casualmente, descobri. Adeus, ilustres aves e pássaros. Noutra tarde virei para conversarmos as luminárias ou as agruras da vida.

antonio-maria