Linda Batista, Grande Otelo, Herivelto Martins e Ary Barroso ao piano, Cassino da Urca, Rio de Janeiro-RJ, década de 1940. Foto de Carlos Moskovics/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Stanislaw Ponte Preta voltava para casa sem nenhuma preocupação, “certo de que seria uma noite calma, dormida longamente”, como há muito não tinha. Ao descer do automóvel, porém, recebeu a notícia grave do porteiro: “A Dolores foi assassinada”. Sem acreditar no que ouvira, o cronista tocou para o apartamento de Dolores Duran, uma das mais queridas intérpretes da noite carioca.
Não podia ser verdade. Ninguém seria capaz de matá-la, tão alegre que era a Bochechinha. Ele a chamava assim porque costumava cumprimentá-la com um aperto carinhoso na face. Quando se viam de longe – durante uma apresentação, por exemplo –, era ela que se apertava de leve ao reconhecê-lo na plateia. Certa vez, ao retornar de uma longa turnê, confessou ao amigo: “Estou mais Bochechinha ainda”. Tinha engordado seis quilos.
Sem nunca ter estudado, Dolores era capaz de brilhar com sua voz rouca num samba ligeiro, numa canção francesa ou num melódico americano – a ponto de impressionar Ella Fitzgerald, que fez questão de assisti-la durante sua passagem pelo Rio, com a mais perfeita interpretação de “My Funny Valentine”.
Como quase todo artista da noite, Dolores gostava de exageros. Levava aquela vida de “ficar depois de tudo acabado, sentada no piano, cantando ou compondo”, envolvida pela fumaça do cigarro, bebendo vodka e uísque, chateando o coração. Por duas vezes aconteceu de acordar numa tenda de oxigênio. Abriu os olhos e perguntou aos amigos em volta, Stanislaw inclusive: “Coração?”. Tendo todos confirmado a suspeita, voltou a dormir.
Na terceira vez, no entanto, o infarto foi fulminante – não, ninguém tinha matado Dolores Duran, como disse o porteiro. Foi seu próprio coração, intenso e desprotegido, que pagou a conta pendurada de tantas noites desgarradas. Ao ver o corpo sem vida da amiga dormindo “com as duas mãos entre o travesseiro e a cabeça”, o cronista arrematou: ela “não sabia de nada, porque sorria. Não sabia também que, desta vez, não poderia abrir os olhos e perguntar: ‘Coração?’”.
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Rubem Braga ainda era um rapazinho quando viu Francisco Alves pela primeira vez. Pegando “sua triste barca de Niterói”, o menino deixou de tomar a média do dia “para não desinteirar o dinheiro da entrada” e foi até o cinema da Glória, onde o cantor se apresentava. Embora já tivesse uns bons anos de estrada, Chico Alves ainda não era o Rei da Voz. A necessidade de defender seu pão como chofer de táxi o impedia de viver uma relação monogâmica com a música.
Muitos anos depois, Braga voltou a encontrá-lo, dessa vez mais de perto. Os dois compareceram a uma patuscada na casa de Almirante, o grande radialista e compositor, que de vez em quando recebia “uma pequena multidão” de gente do meio. Chico, munido do violão, seu “companheiro inseparável”, deu uma canja. O cronista, porém, viu certa melancolia no esforço do cantor para “altear a voz como antigamente, na mesma canção antiga”, talvez rememorando aquele show mais de duas décadas distante. E saiu, como de costume, pensando na força implacável do tempo.
No mesmo ano, Chico sofreu um acidente brutal de carro. Foi carbonizado junto ao seu violão. No enterro, um acontecimento à altura da fama de um dos mais populares cantores do país, Braga testemunhou uma mostra de “como o grande povo sabe ser agradecido a quem tanto tempo o comoveu”. E era “sobretudo o povo das zonas pobres” que compunha aquela imensa “massa triste” e emocionada. Entre gritos e lágrimas, houve quem desmaiasse no aperto da multidão. Muita gente jogou o número da sepultura no bicho, numa espécie de fervor em “homenagem ao morto, à importância do morto” e, principalmente, “ao seu sentimento em relação ao morto”. Chico partiu cedo, mas por “longo, longo tempo sua voz, gravada e irradiada, ainda comoverá este povo triste do Brasil, tão pobre e tão bom”, escreveu o cronista.
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Maysa, ou Maísa, como grafou Antônio Maria, foi uma das maiores cantoras do samba-canção. Desde criança queria cantar, determinada a vencer os preconceitos de sua família abastada. Gravou seu primeiro disco despretensiosamente, a convite de um produtor da RGE que gostou da sua voz. Feito todo com composições próprias, uma inclusive de quando tinha 12 anos, o álbum lhe rendeu destaques máximos nas revistas e nas boates do Rio e já trazia as marcas fundamentais de seu estilo: romântico, pessimista e depressivo. Bem ao estilo da fina música de fossa.
Foi por conta da depressão da amiga que Maria lhe escreveu um Bilhete fraternal, talvez útil. A notícia que circulava por Copacabana era de que a cantora, “num só desespero, além de cortar os pulsos, abrira o gás do banheiro e ingerira uma dose violentíssima de certos comprimidos tóxicos”. Nas boates, diziam que seu “estado era desesperador” e aguardavam o pior. Depois, souberam que os boatos estavam inflados – Maísa apenas “tomara um pileque maior e alguns comprimidos” extras de calmante.
O escritor não entendia como “uma jovem tão bonita, tão artista, tão cheia de êxitos” podia tender constantemente “para a desistência do bem essencial a todos os bens, que é a vida”. À época, não se sabia nem de metade do que significa a depressão. A intenção do amigo era oferecer um ombro e conversar sobre “a verdade irrefutável de que a vida, mesmo quando não chega a ser uma delícia, é uma fascinante experiência de luta e coragem”, bela também “nos transes dolorosos, de que saímos mais livres e fortes”.
O suicídio, afinal, “contém uma desforra, e este é o seu lado fascinante”, mas calha de também conter a morte, “e este é o seu defeito irreparável”. Não se deve “nunca morrer hoje quando se pode morrer amanhã” – mesmo em nossos semelhantes mais intranquilos haverá, “um dia, aquela manhã clara e azul” que nos faz ver “com os olhos da alma sossegada” a beleza de todas as coisas.
“Minha jovem amiga”, aconselhou Maria, “procure o mundo e dê-se por perdida. Viva, sem a nervosia de procurar-se a si mesma, porque cada um de nós é um perdido, um ilustre perdido na humanidade vária e numerosa. Viva, que no fim dá certo”.