Fonte: Os sabiás da crônica, Autêntica, 2021, pp. 297-299.

Estava fazendo tanto frio que nós desistimos. Cada um arrumou o que era seu e fomos saindo, cada um pro seu lado. Eu vinha tranquilo, certo de que seria uma noite calma, dormida longamente, como há muito tempo. Dormir esquecido de mim mesmo, sem sonhar, sem nenhuma preocupação. “Amanhã faz uma manhã linda, de sol, de azul e ar leve” – pensei. E sorri à ideia de levar as crianças à praia. Quando o carro parou na porta do bar, o porteiro veio correndo: “A Dolores foi assassinada...” e seus olhos eram um misto de sangue e lágrimas. E acrescentou: “Eu juro”. Mas não sabia explicar direito. A empregada viera à procura de Jean Pierre, o cantor, que era um grande amigo de Dolores. Dolores estava morta, mas tinham chamado assistência. Um outro, que ouvia, concordou: “A assistência e a Polícia”. Corri para um telefone e chamei Mister Eco. Atendeu com voz de sono, pedindo para não brincar com essas coisas. E se fosse verdade? “Passo aí, Mister. Vista-se, vamos até lá.” Ninguém sabia direito se era verdade ou não, então o melhor era passar lá. Ele concordou, tomei outro táxi e, quando passei, ele já estava na porta, sério, pensando no pior. Entrou e ninguém falou. Eu só pensava que devia ter morrido mesmo, mas morta como? Por quem? Dolores nunca fez mal a ninguém, a não ser a ela mesma. Era assim. Não acreditava no perigo.

Por duas vezes acordara numa tenda de oxigênio. Numa dessas vezes eu estava presente. Lembro que abriu os olhos e perguntou, sorrindo: “Coração?”. Todos em volta acenamos que sim. Ela dormiu de novo. O Mister pediu mais pressa ao chofer. Estava nervoso. A Bochechinha morrer assim. Não podia ser verdade. Tão alegre, ué! Fui lembrando Dolores, até ali. Sempre que a encontrava, já virava o rosto de lado, para o “Cumprimento”. Apertava sua bochecha e só então ela queria saber “qual era o lance”. Seu jeito de falar e de cantar. Sempre rouca... mas sempre cantando. Naquela noite, no Clube da Chave, nós todos com um bruto sono, mas sem coragem para levantar da mesa. Dolores cantava ao piano “Sometimes I Feel Like a Motherless Child”. Naquele tempo, estava apaixonada pelos spirituals e tirava todos ao piano. “Bochechinha, vamos embora!” Ela obedeceu, mas exigia um bife antes, num botequim qualquer. “Você sabe, Irmão? Eu vou me mandar daqui.” Eu era “Irmão”, e fraternalmente disse que não era preciso. Bobagem, outros amores viriam. Para animar disse uma besteira qualquer. Ela sorriu e não quis o bife: “Esta vaca era honesta. Morreu mas não se entregou” – e empurrou o prato. Paguei, saímos. Bochechinha foi dormir. Era muito assim. Dolores não gostava de dormir cedo. Mesmo depois de sofrer o primeiro enfarte. Depois do segundo é que se cuidou um pouquinho mais. Por pouco tempo, porém. Vida de artista, boêmia como ela só. Gostava era daquilo de ficar depois de tudo acabado, sentada no piano, cantando ou compondo. Às vezes era um violão vindo ninguém sabia de onde. Voltou a ser o que era, porque sua personalidade era impressionante. Nada mudou Dolores, nem depois que casou, nem depois da adotar a criancinha. Adorava a todos. Só se afastava de alguém quando sentia que estava prejudicando o amigo. Uma vez foi embora. Esteve no Uruguai, na Argentina, andou pelo Sul do país. Quando voltou e me viu virou o rosto e comentou: “Engordei seis quilos. Estou mais Bochechinha ainda”. Mas isto ela só disse depois que eu apertei. Mister Eco abre a boca, murmura qualquer coisa que eu não entendi. Perguntei o que era. Nem respondeu. Fiquei pensando na noite de quinta-feira passada. Não sei por que, de repente me deu vontade de ir ver a Bochechinha. Saí do restaurante e toquei para o bar. Quando entrei ela gritou do canto: “Salve, Irmão!” Não fui até sua mesa. Eram uns rapazes que eu não conheço. Sentei ao lado do piano. Em pouco ela veio e de lá, do microfone, explicou: “Já aprendi a canção do gringo”. O gringo era Charles Aznavour e nós concordamos que sua mais bela canção era “Ay, Mourir pour Toi”. Cantou como ela sabia cantar. Dolores era de um impressionante ecletismo e, com o mesmo sentimento, saía-se bem num samba ligeiro, num melódico americano ou numa canção francesa. Foi – durante muito tempo – a melhor crooner da noite carioca. Foi e será, porque não vai aparecer outra igual nunca mais. Na segunda parte engasgou na letra, solfejou e sorriu.  Raul Mascarenhas estava no piano, Magé ponteava a guitarra. Talvez houvesse também um contrabaixo. Sei lá. Estava ficando bêbado. Levantei e acenei de longe. Ela, do microfone, apertou a própria bochecha, num até breve. Depois não vi mais. “É nesta rua” – disse o Mister ao chofer. O carro manobrou e parou na porta do prédio. Havia um carro da Polícia na porta. Nós nos entreolhamos, mas ainda aí ninguém disse nada. O ator Jorge Dória estava na porta. Não sabia de nada, mas morava no prédio e abriu a porta. Entramos os três, subimos calados e, quando a porta do elevador se abriu, havia moças chorando no corredor. Gigi  – o do Bacará –, Mário – o do Little Club – olhavam-nos espantados. Foi Gigi quem confirmou: Era verdade sim. A Bochechinha chegara às seis da manhã, dissera à empregada para acordá-la somente na hora de ir trabalhar. Não fora assassinada. Ninguém mataria Dolores, fui pensando de novo. Mister Eco voltou para o elevador, chorando. Entrei na sala. Só o Comissário falava. Queria saber como tinha sido até às seis. Marisa – a gata mansa – explicava baixinho. “E depois fomos ao Kilt, onde tomamos mais um para ir dormir.” O Comissário não sabia o que era Kilt. “Um bar” – expliquei – e vi que todos me olhavam. Marisa calou-se e eu soletrei: K-I-L-T. O Comissário era um velho conhecido. Agradeceu. Perguntei detalhes. Não havia. Morrera do coração. Um colapso, talvez. Pelo jeito morrera aí pelas 11 da manhã. A empregada só entrara no quarto às 10 da noite. E eu entrava agora. “Quer ver o rosto?” Fiz que sim com a cabeça e alguém levantou o lençol. Dolores dormia com as duas mãos entre o travesseiro e a cabeça. Não sabia de nada, porque sorria. Não sabia também que, desta vez, não poderia abrir os olhos e perguntar: “Coração?”.

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