Torcedores no Estádio do Pacaembu, São Paulo-SP, 1942. Foto de Thomaz Farkas/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Há quinze dias, publicamos a primeira parte de um especial sobre os clubes de futebol dos cronistas. Falamos do Fluminense, do Flamengo e do América, com direito a um brevíssimo aceno ao Bonsucesso. Agora, como prometido, trataremos da dobradinha alvinegra que ficou de fora: Vasco e Botafogo. Não por acaso, os dois times mais aplaudidos pelo elenco de escritores do Portal.
Na arquibancada do Vasco, sentam-se Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade e, vá lá, Antônio Maria – na verdade, ele era Sport no Recife, mas virou a casaca ao desembarcar no Rio, por amor ao seu conterrâneo Ademir de Menezes, ídolo cruz-maltino. Depois, com a amarga derrota do Brasil na Copa de 1950 – cujo gol de estreia, aliás, foi feito por Ademir –, Maria perdeu o interesse pelo esporte e pendurou as chuteiras.
Numa escala ascendente de fervor vascaíno, Drummond é o próximo. O poeta até que escreveu bastante sobre futebol, e não escondia o prazer de ver jogar Garrincha e Pelé – este, quando marcou o seu milésimo gol, recebeu de Drummond uma homenagem certeira: “O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols como Pelé. É fazer um gol como Pelé”. Entusiasmava-se em período de Copa do Mundo e vez ou outra declarava seu amor ao Vasco, como no final do poema “A semana foi assim”, recolhido no volume Amar se aprende amando: “E viva, viva o Vasco: o sofrimento/ há de fugir, se o ataque lavrar um tento./ Time, torcida, em coro neste instante,/ vamos gritar: Casaca! ao Almirante./ E deixemos de briga, minha gente./ O pé tome a palavra: bola pra frente”.
À frente de todos, liderando a nação vascaína, está Rachel de Queiroz, que nutria verdadeira paixão pelo clube – mas paixão racional, disse, pois “quando escolhemos o Vasco foi porque, depois de lúcida deliberação, nos convencemos de que ele é o grande, o máximo, superior a todos”. Este torcedor não precisa “sair gritando por cima dos telhados que é Vasco”, mas “quando as vitórias se acumulam”, “por mais pena que se tenha dos vencidos”, ele lança ao ar seu aliterante grito de guerra: “Viva o Vasco!”.
Do lado oposto, na outra arquibancada, há a torcida do Botafogo com sua estrela solitária – solitária apenas no escudo, pois é o mais saudado clube entre os cronistas da casa. Paulo Mendes Campos, Clarice Lispector, Otto Lara Resende, Fernando Sabino e Ivan Lessa são, em níveis variados de empolgação, os nossos botafoguenses.
Otto era o menos engajado – o que não diminui torcedor algum. “Em matéria de futebol, costumo dizer que sou Botafogo desativado”, disse em “Bola murcha”, crônica em que registra a derrocada de seu interesse pelo esporte ao longo dos anos. Sabino também foi pouco praticante, com uma ou outra menção solta ao clube. Na crônica “Deixa o Alfredo falar!”, por exemplo, o sujeito tenta completar um raciocínio sobre o Botafogo, mas é toda hora interrompido. O leitor que carrega um time no peito sabe identificar, nessa amostra grátis de Botafogo, uma manifestação de amor: podendo citar qualquer clube, falou justo do seu, e isso quer dizer muito.
Como vários jovens de sua geração, Ivan Lessa escolheu o Botafogo pelo feitiço de Heleno de Freitas, craque absoluto e galã de irrecuperável indisciplina. Não temos no Portal nenhuma crônica de Ivan sobre o clube, mas recomendamos a leitura de “Tempo e tape”, em que o cronista tenta não saber do resultado de um Fla-Flu para assisti-lo mais tarde, na gravação de um VHS, com gosto de inédito. Está lá uma simpática descrição dos botafoguenses, geralmente reunidos num “bar em rua de muita árvore” e traduzidos pela expressão “de um senhor com um cachorro ao lado”.
Armando Nogueira foi um de nossos mais respeitados jornalistas esportivos. Cobriu futebol a vida toda. Certa vez, comentando uma vitória do Botafogo, escreveu: “De bom grado eu trocaria a vitória de meu time num grande jogo por uma crônica de Clarice Lispector sobre futebol”. Clarice, que era sua leitora mais pelo bonito do estilo que pelo assunto, publicou “Armando Nogueira, futebol e eu, coitada” em resposta.
Embora não entendesse muito das regras, cobrava-se de gostar do esporte e resolveu depositar sua “ignorância apaixonada” no Botafogo: “Sou Botafogo, o que já começa por ser um pequeno drama que não torno maior porque sempre procuro reter, como as rédeas de um cavalo, minha tendência ao excessivo”. Ao estádio, Clarice foi apenas uma vez, mas fazia companhia ao filho na sala de televisão. E quando perguntava demais ao menino, ouvia dele um diagnóstico desanimador: “ah, mamãe, você não entende mesmo disso, não adianta”.
Sua adesão ao Botafogo era radical, mas não cega – ela não o impediu de se render ao rival num momento de vida e morte, como conta em “Salvo pelo Flamengo”. Em 1956, na recepção de um hotel lotado em Estocolmo, no qual estava hospedado, Paulo viu o prenúncio da desgraça na figura de um imenso sueco, duas vezes mais forte que o homem mais forte que você conhece, furioso por não conseguir um quarto. Ele acusava o recepcionista, “de uns 60 anos e de uma honesta cara escandinava”, de favorecer norte-americanos. Justo Paulo, com seu jeitão de mineiro.
O gigante vociferava em inglês, num “esforço linguístico que contraía todos os músculos do seu rosto”: “American! Dollar! No like! ”. O cronista criou coragem para rebater: "No, Brazilian! ”. Depois de muitas trocas de American e Brazilian, o sueco convenceu-se de que estava diante de um brasileiro. De repente, “começou a fazer problemáticas firulas com a bola imaginária”, gritando “Flamengo! Flamengo!”. “I Flamengo! ”, disse, e então quis saber, cutucando o peito do cronista: “You Flamengo? ”. O jeito foi pedir perdão ao Botafogo e também gritar, descaradamente: “Flamengo! Yes! Flamengo! The greatest one! ”.
Nota do Editor
Sobre o bate-bola entre Armando Nogueira e Clarice Lispector, não deixe de ler “Compacta prosa, lances poéticos”, delicioso ensaio de Elizama Almeida, torcedora do Bangu.