Os clubes dos cronistas (parte um)

Torcedores no Maracanã no final da Copa de Mundo de 1950, Rio de Janeiro-RJ, 1950. Foto de José Medeiros/ Acervo Instituto Moreira Salles.

A recente conquista da Libertadores da América pelo Fluminense levantou, além do moral do editor, uma questão importante por aqui: quais cronistas da casa estariam comemorando o título? E para que time cada um torcia? Como numa partida de futebol, vamos dividir o assunto em duas partes e abarcar o maior número possível de clubes e escribas.

Começando pelo campeão, o Fluminense tem uma das menores arquibancadas do Portal: apenas Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta (que nada tem a ver com o time paulista, aliás), vibrava com o tricolor. Mas não muito – era, como descreveu-se Millôr Fernandes, “um tricolor saudável”. Gostava mais de alfinetar os rivais, em especial os botafoguenses, que viviam “de cabeça inchada” e não teriam “classe suficiente para torcer para o Flu”. Suas frases ferinas não pouparam nem torcedores da segunda divisão: fulano “estava tão mal que mais parecia reserva do Bonsucesso”, escreveu certa vez.

João do Rio não era Fluminense. E nem poderia ter sido, já que nos primórdios do século XX o futebol não passava de um bate-bola de ingleses. Mas foi durante uma visita ao campo em construção do clube que seu apuradíssimo faro de repórter identificou uma definitiva mudança social em andamento: os moços, que décadas antes se dedicavam apenas ao ofício da poesia ruim e usavam “lunetas de míope”, passaram a se interessar pelos esportes e estavam, naquele longínquo 1905, trocando os remos pelos goals e os shoots do foot-ball, pronto “para absorver agora todas as atenções”.

Além disso, “O foot-ball”, parte de uma série de crônicas dedicadas aos esportes, traz um perfil daqueles que seriam os primeiros sócios do Flu, assistindo atentos a uma pelada primordial: “Moças de vestidos claros perfumam o ambiente com o seu encanto e cavalheiros sportsmen, de calça dobrada e sapatos grossos, olham o jogo com ar de entendido, falando em inglês”. João do Rio observou também os jogadores. Achou inacreditável “o desenvolvimento muscular das tíbias” daqueles jovens. Um pontapé de um deles passaria um homem forte “para o outro mundo” com facilidade, pensou.

Anos depois, o cronista voltou ao assunto na inauguração do “novo ground do Club de Regatas do Flamengo” – time nascido, aliás, por conta de um desentendimento entre jogadores do Fluminense. Em “Hora de foot-ball”, João do Rio lembra que o Flamengo tem uma dívida para cobrar da sociedade carioca: foi de lá que partiram “a glorificação do exercício físico” e a avassaladora paixão pelo esporte. Antes disso, fazer exercício era uma extravagância – “as mães punham as mãos na cabeça”, desoladas, quando um menino arranjava um ferro para puxar.

O estádio, localizado na rua Paissandu, já existia, mas a serviço de outros esportes, outros clubes. Em 1916, o Flamengo passou a alugar o espaço e transferiu para lá todas as atividades. Para a inauguração rubro-negra, houve um amistoso contra o Fluminense, vencido por 4x1. Na rua, “quinhentos automóveis buzinavam, bufavam, sirenavam”, e os portões do campo “golfavam para a frente do Guanabara mais de seis mil pessoas arrasadas da emoção paroxismada do foot-ball”. Futebol passava a ser coisa séria.

À época, Rubem Braga tinha só três anos de idade. Talvez não fosse ainda o flamenguista que viria a ser, comedido mas orgulhoso. Torcer pro Flamengo o livrou de pelo menos duas enrascadas. A primeira, contada em “Diário de um subversivo”, aconteceu na pensão em que morava, no Catete. Dois estudantes integralistas tinham se mudado para lá e começaram a puxar papo sobre política com o cronista. “Minha política é o Flamengo!”, respondeu logo, para espantar os urubus.

A segunda foi contada por Marco Antonio de Carvalho, na biografia Um cigano fazendeiro do ar. Rubem Braga, que sempre descascou Getúlio Vargas em suas colunas, vivia fugindo da polícia. Mudava-se de estado com frequência, em busca de trabalho e paz. Mas viajar, naquele período, só com um salvo-conduto expedido pelo governo. Desesperado para sair do Rio e se exilar em Minas, Braga apresentou uma carteirinha falsificada de jogador reserva do Flamengo a um guarda, que era rubro-negro fanático e aprovou a travessia, feliz por conhecer a nova contratação do seu time.

Antônio Maria trabalhou durante muitos anos como locutor de futebol. Mas perdeu o gosto pelo esporte depois de narrar o fatídico gol do uruguaio Ghiggia contra o Brasil na Copa de 1950. Por acaso, dez anos depois, o cronista voltou às gerais do Maracanã para a final do Carioca, entre Fluminense e América. Emocionou-se com a alegria das arquibancadas e dos torcedores, vivendo num outro registro de tempo, sem passado nem futuro.

Quando o América entrou em campo, Maria descobriu-se América. Tanto quanto tinha sido Sport, no Recife, e depois Vasco, ao chegar no Rio, por amor a Ademir de Menezes. O que o agradou no clube, “além do sangue das camisas luzindo ao sol, era aquele ímpeto amadorístico que a gente só encontra nos clubes pobres, de jogadores que ga­nham pouco”, escreveu em “Povo, América e tristeza”. Por 2x1, o América levou a taça, a última que levantou na primeira divisão, numa festa de lavar a alma dos americanos.

Mas “passado o susto da alegria”, como se tivesse medo de perdê-la novamente, um homem subiu numa cadeira e gritou “com a voz mais triste deste mundo”: “América! Vamos para o bi!”. Era o retrato do sofredor irremediável. “A alegria de ser campeão, embora não houvesse acabado, já o incomodava”, e era preciso voltar logo a sofrer. Tinha tudo e queria mais. E nesse desejo recomeçava o seu sofri­mento eterno. Futebol, não tem jeito, é assim.

Vascaínos e botafoguenses, não esquecemos de vocês. Saibam que os alvinegros formam maioria entre nossos cronistas. Nos vemos no segundo tempo – digo, no segundo texto.