Fonte: Deixa o Alfredo falar!, Record, 1976, pp. 28-32.
A ARTE brasileira da conversa não é de fácil aprendizado. Como toda arte, exige antes de mais nada uma verdadeira vocação. E essa vocação se aprimora ao longo do caminho que vai da inocência à experiência. Como em toda arte.
Para princípio de conversa, distinga-se: quando falo em conversa, não estou me referindo à lábia, à astúcia, à solércia do brasileiro no passar a bicaria e vender o seu peixe. Falo precisamente no bate-papo, erigido numa das mais requintadas instituições nacionais.
Mas por que arte brasileira? Os outros povos acaso não batem papo? A própria expressão, brasileiríssima, corresponde em inglês exatamente ao verbo to chat, na acepção que lhe dá o dicionário: “to converse in an easy or gossipy manner; talk familiarly.” Até os ingleses, meu Deus, os ingleses têm também o seu papo: um deles, na mesa do bar, olha para fora e diz que vai chover; meia hora depois outro diz que não vai chover; meia hora depois o terceiro se retira dizendo que não gosta de discussão. A falta de graça desta velha anedota não está em ser velha, mas na finalidade útil que fez michar o papo. Este não deve ter finalidade alguma, senão a de matar o tempo da melhor maneira possível. É coisa de latino em geral e de brasileiro em particular: fazer da conversa não um meio, mas um fim em si mesmo. Se não me engano, essa é a distância que separa a ciência da arte.
No papo bem batido, a discussão não passa de uma motivação, sem intuito de convencer ninguém, nem de provar que se tem razão. Os que nela se envolvem devem estar sempre prontos a reconhecer, no íntimo, que poderiam muito bem passar a defender o ponto de vista oposto, desde que os que o defendem fizessem o mesmo. Os temas devem ser de uma apaixonante gratuidade, a ponto de permitir que, no desenrolar da conversa, de súbito ninguém mais saiba o que se está discutindo. Mesmo nas eternas discussões sobre mulher, religião ou futebol, para que se constituam em bate-papo, longas digressões hão de ser admitidas, desde que pertinentes.
Esta última observação, aliás, é pertinente ela própria, já que falei em futebol, quando se trata de papo acalorado como o que batiam aqueles dois amigos, parados numa esquina, violando o silêncio da rua adormecida:
― Se o último jogo do Campeonato fosse do Botafogo contra o Fluminense...
― Ora, Alfredo, pra cima de mim! Ia ser de goleada.
― Você não me deixou terminar, Dagoberto. Eu queria dizer que o Botafogo...
― Que Botafogo que nada! Com o Vasco diziam a mesma coisa...
― Dagoberto, você não me deixa falar!
― ... e no entanto ele acabou entrando bem. Essa não, Alfredo.
― Não estou falando no Vasco. Eu disse que o Botafogo...
― E no ano passado, que foi que o Botafogo fez? Me diga só o que ele fez.
― Você não me deixa falar, Dagoberto.
― Desde o princípio todo mundo sabia que o Fluminense...
― Você não me deixa falar!
A essa altura abriu-se uma janela no edifício da esquina e surgiu um indivíduo estremunhado:
― Ô Dagoberto! Deixa o Alfredo falar!
A boa conversa implica sempre em deixar o Alfredo falar. Além disso a discussão, ainda que gratuita, pode exaurir o papo diante de uma impossível opção, como a de saber qual é o melhor, Tolstoi ou Dostoievski, Corcel ou Opala, Caetano ou Chico. A menos que ocorra ao discutidor o recurso daquele outro, hábil em conduzir o papo, que teve de se calar quando, no melhor de sua argumentação sobre energia atômica, soube que estava discutindo com um professor de física nuclear:
― Você é presidencialista ou parlamentarista ― perguntou então.
― Presidencialista.
― Pois eu sou parlamentarista. E recomeçaram a discutir.
Mais ardente praticante do que estes, só mesmo o que um dia se intrometeu na nossa roda, interrompendo animadíssima conversa:
― Posso dar minha opinião?
Todos se calaram para ouvi-lo. E ele, muito sério:
― Qual é o assunto?
Mas percebo que me perdi em discussões, polêmicas, argumentos e desaguisados, afastando-me do verdadeiro espírito que deve presidir o culto dessa arte. De preferência, que ela seja praticada apenas a dois como diz o mineiro, mais de dois é comício. E entre estes dois, bom será que reine amável concordância, para que, alternadamente ouvindo e falando, possam ambos conjugar o delicioso verbo discretear.
De minha parte, possa eu encerrar a conversa rendendo minha homenagem a um amigo: àquele que, no consenso geral dos que com ele privam, veio dar a esta arte o melhor do seu talento criador.
Ao longo de minha vida tive a ventura de conviver com excelentes papos, de Jayme Ovalle a Sérgio Porto, de Milton Campos a Mário de Andrade, para só falar nos mortos mais queridos. Não sendo privilégio de gente ilustre, tenho encontrado grandes praticantes entre marceneiros, pescadores, garçons e choferes de táxi.
Mas nenhum como este, cuja despedida à porta de sua casa se prolonga de meia-noite às quatro, deixando-nos a impressão de haver decorrido apenas meia hora; capaz de reter-nos a noite inteira num café em pé, conversando sobre o que seja, do último boato político à imortalidade da alma. Jânio Quadros, quando Presidente, chegou a mandar chamá-lo a Brasília — queria-o como seu assessor:
― Soube que você gosta de bater papo. Venha fazê-lo aqui.
― Fá-lo-ia, Presidente — que língua, a nossa! — se tivesse competência. Mas não passo de um especialista em ideias gerais.
― Eu também! exclamou o Presidente, batendo no peito. Depois, olhos brilhantes, apontou um mapa na parede: — E este Brasil inteiro entregue a nós dois! Já pensou?
Tinha razão, o Presidente. E tê-lo-ia (!) levado na conversa, se as intenções presidenciais fossem apenas as de conversar. Porque se trata do rei da conversa, o Pelé do bate-papo, reconhecidamente o mais primoroso cultor desta arte sutil. Já tive mesmo a cautela, apontando-o desde já à posteridade, de compor para ele um epitáfio:
“Aqui jaz Otto Lara Resende,
Mineiro vivo, mancebo guapo.
Deixa saudades, isso se entende:
Passou cem anos batendo papo.”