Do muito que já se escreveu sobre Fernando Sabino (1923-2004), a avaliação mais fina talvez esteja em “O perseguidor”, pequeno artigo de Silviano Santiago publicado por ocasião de sua morte. Além de “estilista impecável”, escreve o crítico, o escritor mineiro não foi menos que “o perseguidor do Santo Graal da literatura”.
Nenhum exagero nisso: tão precoce quanto perseverante, o autor do romance O encontro marcado, sua obra-prima, publicou o primeiro conto aos 12 anos, e o último livro, o romance Movimentos simulados, poucos meses antes que um câncer o levasse, na véspera do dia em que chegaria aos 81.
Profissional como poucos de seus pares, Sabino, no final da vida, passou criteriosa peneira em seus bem organizados arquivos, e reuniu nas 655 páginas de Livro aberto o que lhe pareceu digno de sua assinatura, com o cuidado de destruir o refugo. Foi nesse processo que vieram à tona os originais de Movimentos simulados, escritos antes dos 25 anos e desde então engavetados.
Nas quase sete décadas entre a estreia tipográfica e a publicação do último livro, Fernando Sabino pagou o preço de uma fidelidade exemplar a sua paixão literária: sem jamais ter sido um escritor de gabinete, raro foi o dia em que, inspirado ou não, ele não se sentou para escrever, disciplina que lhe permitiu construir obra extensa e de alta qualidade, e tornar-se persistente best seller.
O que não deixa de ser espantoso, em se tratando de um homem que, vocacionado também para a ação, a ela não se furtava: irrequieto, Sabino foi campeão de natação, baterista amador de jazz, jornalista, editor de livros (nas relevantes editoras do Autor e Sabiá, que fundou e dirigiu com Rubem Braga) e cineasta produtor de documentários sobre escritores, além de globe-trotter incapaz de resistir à sedução da estrada – experiência que, entre outros ganhos, lhe rendeu um livro, De cabeça para baixo.
Apaixonado pelo cinema e pelo romance policial, e tendo passado longa temporada em Nova York nos anos cruciais de sua formação, Sabino, lembra ainda Silviano Santiago, veio a ser entre nós o inaugurador do “modo norte-americano de ser escritor”, mais aberto ao mundo que o velho “modo francês”, recluso e abafado, em que sua geração e as anteriores se criaram.
Enovelado numa fartura de solicitações extraliterárias, qualquer escriba correria o risco de se dispersar – mas não Fernando Sabino, obstinadamente aplicado ao romance, à novela, ao conto, à crônica. “Ninguém o supera na consciência literária”, testemunhou o colega Otto Lara Resende. “Ninguém foi mais fiel à sua vocação.”
Como cronista, Sabino iniciou-se nos anos que viveu em Nova York, na década de 1940, e desse gênero tirou parte substancial de seu sustento. Não sem muita canseira, sobretudo nos períodos em que esteve escravizado ao tormento da crônica diária.
Como cronista semanal, seu momento mais alto terá sido o tempo em que brilhou na revista Manchete, em especial nos anos 1950 e 1960. Em sua página, “Aventura do cotidiano”, Fernando Sabino não tardou a se consolidar como um dos grandes da crônica brasileira, mestre na arte de capturar no dia a dia aparentes insignificâncias – situações, histórias, personagens anônimos –, material de vida que seu talento de narrador soube filtrar em crônicas deliciosas, muitas das quais vêm a ser, também, primorosos contos.
Humberto Werneck
* Katya de Moraes, bibliotecária do Departamento de Literatura, e Elvia Bezerra, coordenadora. Ambas contaram com a colaboração de Humberto Werneck para elaborar esta cronologia.