Remate do arco, detalhe do altar-mor, Igreja de São Francisco de Assis, Ouro Preto-MG, 1945. Foto de Horácio Coppola/ Acervo Instituto Moreira Salles.
No princípio, dizem, era o verbo. Dele veio a luz, que resplandeceu nas trevas. Depois surgiram o céu e a terra, as águas e as montanhas. Em algum momento desse artesanato primordial, talvez para aplacar alguma solidão divina, criaram-se os anjos. Um deles, o mais belo e distinto de todos, rebelou-se contra a sua natureza. Por arrogância e orgulho, ou por desejo mesmo, caiu. Tornou-se o primeiro dos demônios. O diabo. Você já deve ter ouvido essa história contada por aí. Por isso, podemos resumir tudo num parágrafo só e seguir direto para o Rio de Janeiro, alguns milhares de anos depois, onde cronistas preenchiam suas laudas na imprensa, tentados igualmente por anjos e demônios.
Sobre o demônio, disse Paulo Mendes Campos, muita gente se engana. Seu barato não é a turbulência, como acham. Diabo não gosta de agitações, nem sequer de movimento, pois ergue o seu negócio na rotina, na pasmaceira, sobre “o tédio das paisagens e das almas”. O vento, na verdade, o aborrece – “a não ser um vento singular, uma brisa morna de estio, que em vez de agitar, parece paralisar as folhas, as ruas, as casas”. Todas as agitações do nosso mundo são patrocinadas por anjos bons. O diabo não quer confusão. Quer “desertos estéreis, onde não vingue o sentimento mais tenro”. O capeta é “pacífico, burguês e familiar” e quer a humanidade sentada confortavelmente “em suas monótonas poltronas”. Ele jamais “se alia às revoluções”, mesmo que prometam sangue e injustiça. O que o demônio quer é “sossego, quer que os homens se casem e sosseguem”.
Em matéria de casamento, o príncipe das trevas deseja que tenham “um lar calmo, em que a mulher engorde e crie filhos, em que o marido boceje e tome remédios”, na certeza de que os cônjuges, sem perder a compostura, vão se aborrecer e se odiar ao infinito. Pelo amor ao enfado, ele adora “a burocracia em sua acepção mais abstrata de quase divindade”. A burocracia é, por excelência, a doutrina filosófica do demônio. Quando nos dá, de repente, uma vontade súbita de ir embora, de viajar e sumir num ímpeto igual ao dos “antigos conquistadores da terra”, haverá sempre uma “muralha burocrática, um exército de cautelosos funcionários em cujos guichês em série vai se esfacelando a nossa santificada loucura”. É obra, certamente, do diabo. Porque “o desejo de fugir somente ocorre quando marulham em nós as vagas da vida e é contra a vida que o demônio combate”.
Sendo o senhor do tédio, o demônio procura injetá-lo “na natureza de todas as coisas”, trabalhando para fazer acreditar que “a monotonia é a coisa primeira e última e que a mesquinhez é a substância íntima do universo”. É ele que incentiva o progresso, inspirando teorias, encurtando distâncias, “submetendo os sentimentos a proposições geométricas, tornando o mundo uma equação perfeita” e, sobretudo, fazendo crer que o mistério não existe.
O mistério da vida, com suas possibilidades infinitas, é assunto da seara angelical, não dos demônios. Cabe aos anjos da guarda, esses que zelam por cada um de nós, nos guiar pela mão por esses caminhos confusos. Às vezes acontece de protegido e protetor não terem tanta afinidade assim. E, às vezes, de um abandonar o outro mais cedo que o esperado – caso de Haroldo, um jovem operário de 21 anos, que dispensou o seu anjo por conta própria num bilhete de suicídio, em 1951. Direto ao ponto, o rapaz escreveu que a intenção de sua partida era dar tranquilidade ao seu anjo, “sempre aflito e preocupado” com as angústias do “homem que enfrenta a solidão da morte”. A missão do anjo, disse Rubem Braga, é justamente a de nos defender de nossos próprios demônios, não dos alheios. E por isso é tão difícil: enquanto ele “vive quase todo o tempo atrás de nós, um pouco à esquerda e ao alto”, os demônios vivem lá dentro. Estão “presos, e postos a ferros”, mas tem hora que “berram e se agitam no porão e fazem medonho escarcéu, querendo libertar-se”.
“De mim, confesso que poucas vezes tenho soltado meus demônios, e nunca os soltei a todos de uma vez”, contou o cronista. Seu anjo da guarda, portanto, era dos fortes – mas se deixava iludir com alguma facilidade. Certa vez, num bar de Copacabana, Braga entrou sozinho para tomar o penúltimo copo antes de dormir – “pois o último, como é sabido, só se bebe na hora da morte”. Estava sóbrio e feliz. Alguém apareceu e apontou uma bela moça na penumbra, em outra mesa. Mas alguma coisa “dizia para não dar aqueles três passos fatais” que separavam a sua mesa da dela, ponderou, e decidiu não se mover. Desviou os olhos, afastando o pensamento, mas ouviu um murmurinho quase inaudível vindo de lá. Olhou de volta e viu o seu anjo, embevecido, sussurrando coisas ternas no ouvido da moça.
Desde então, o cronista passou a desconfiar de seu protetor. Toda vez que o encarava, o anjo baixava os olhos. Sabia que tinha entregado seu protegido aos demônios e não tinha mais autoridade para protegê-lo. Vai ver ele tinha sido, em freelas passados, dispensado cedo do serviço, como o anjo do jovem Haroldo. E depois de muito tempo desempregado, foi designado a Rubem Braga, para ver se pegava de novo no tranco. Mas não deu. Aparentemente, “ao longo das noites tristes”, os anjos também precisam de companhia, e podem acabar arrastando asa para os nossos demônios. Nesse caso, só nos resta torcer para que não se cansem de nós.
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Nota do editor: Não deixe de ouvir “A casa materna”, onde certamente habitam mais anjos que demônios, na voz de Bia Paes Leme, coordenadora de música do IMS. A bela crônica é de Vinicius de Moraes, o mais recente autor deste Portal.