Ouça a crônica de Paulo Mendes Campos na voz do escritor Guilherme Tauil.
Sem dúvida nenhuma, ao demônio não interessa o movimento. Grandes e pequenas agitações do nosso mundo são patrocinadas pelos anjos bons. Para o príncipe das trevas, a monotonia é mais lucrativa. A rotina é o seu negócio, ele trabalha sobre o tédio das paisagens e das almas. Muita gente se engana e a própria crendice supõe erradamente que os trêfegos sacis frequentam os redemoinhos. Engano. O vento aborrece Satã, sendo um convite à viagem, a não ser um vento singular, uma brisa morna de estio, que em vez de agitar, parece paralisar as folhas, as ruas, as casas. Da mesma maneira, erramos redondamente quando imaginamos o diabo presente nas enormes confusões da vida. O diabo não quer confusões, a esperança demoníaca não se funda do torvelinho das paixões e sim na ausência de torvelinho, nos desertos estéreis, onde não vingue o sentimento mais tenro. O plano do capeta consiste essencialmente em reduzir a terra e os seus inquietos habitantes a uma mesma chatice, fazer com que a humanidade se sinta confortavelmente em suas monótonas poltronas.
O diabo é pacífico, burguês e familiar. Ele jamais se alia às revoluções, ainda que elas prometam muito sangue, muita injustiça, muita perversidade. O que o demônio quer é sossego, quer que os homens se casem e sosseguem. Não lhe interessa o divórcio e nem mesmo os amores adúlteros. É contra o amor o diabo. Em matéria de casamento, ele prefere o mariage de raison ou qualquer outra forma inconsistente de conjunção matrimonial, na certeza de que os cônjuges se aborrecerão e se odiarão ao infinito, sem perder, entretanto, a compostura: sem assassinatos, sem desonras. Um lar calmo, em que a mulher engorde e crie filhos, em que o marido boceje e tome remédios, eis a família ideal para o demônio. Ele adora os funcionários exemplares. Adora, porém, acima de todas as coisas, a burocracia em sua acepção mais abstrata de quase divindade. Nesse sentido metafísico, pode-se dizer que a burocracia é a doutrina filosófica do capeta. A gente, por exemplo, um dia qualquer, sente vontade de ir embora, de viajar, sumir, mas sente vontade assim heroica e repentinamente como os antigos conquistadores da terra. Vamos querer realizar o desejo e encontramos pela frente uma muralha burocrática, um exército de cautelosos funcionários em cujos guichês em série vai se esfacelando a nossa santificada loucura. É o diabo, é a previdência diabólica, um pormenor objetivo da filosofia infernal. E isso porque o desejo de fugir somente ocorre quando marulha em nós as vagas da vida e é contra a vida que o demônio combate. Ninguém como ele sabe que danação não está no excesso de vitalidade, mas na deficiência de, e, todas as vezes em que nos deblateramos como um pássaro para escapar à vida hibernal dos tempos modernos, batemos fatalmente com a cabeça nos planos do demônio.
Satã não é igualmente tão anticlerical quanto parece. Pelo menos, não tem nenhum parti pris contra os ministros de Deus, pelo contrário, sem distinguir classes, crenças e condições talares, ele escolhe judiciosamente os seus amigos. Levado a um plano especializado a demonologia mostra muitos casos de paróquias em que o diabo vive em harmonioso contubérnio intelectual com os respectivos vigários.
O tédio é a mística do diabo e, de fato, não existem melhores paladinos do tédio do que certos curas de cidadezinhas sem horizontes, em que a poeira das ruas adere de maneira patética às paredes da alma. Sendo a sua mística, o diabo procura introduzir o tédio na natureza de todas as coisas, tentando fazer acreditar que a monotonia é a coisa primeira e última e que a mesquinhez é a substância íntima do universo. Não nos iludamos. Os poetas malditos do século XIX só foram diabólicos parcialmente, e isso porque representaram de maneira muito exata luta entre o demônio e o anjo, e derradeira luta entre os dois. Na verdade, o século passado representa o momento preciso em que o diabo deu humanidade e o esplendor dramático desse duelo permanece nos versos dos chamados poetas. Daí para a frente, Satã passou a executar os seus planos, incentivando o progresso, inspirando teorias higiênicas a respeito dos negócios da alma, espanejando a escuridão, diminuindo as distâncias a fim de torná-las menos convidativas, fazendo crer que o mistério não existe, submetendo os sentimentos a proposições geométricas, tornando o mundo uma equação perfeita, cuja incógnita fosse o desencanto. Não há maior apologista de uma planificação total do que o diabo. O feminismo, e creio que já se começa a sentir o seu caráter diabólico nos Estados Unidos, foi uma réussite do demônio. Tudo enfim que repete ou iguala é obra do chifrudo. Tudo que amesquinha e escarnece a criatura é presidido pelo príncipe das trevas. Escritores como Anatole France ou Machado de Assis foram literalmente possessos na aparência tranquila da vida que levavam. Como o sinal da cruz, o desvairismo e a generosidade dizimam o demônio.