31 mar 2022
Guilherme Tauil
Que Rubem Braga foi um de nossos mais líricos cronistas, todo mundo sabe. Com aparente simplicidade, era capaz de revelar beleza em gestos que nossa vista fatigada deixa escapar. O que nem todos se lembram é que, ao mesmo tempo em que falava de infância, amores e amigos, o sabiá da crônica bicava autoridades e sobrevoava problemas sociais, em tom de denúncia. Na verdade, para ele, poesia e justiça comunitária não são contradições – o interesse pelas coisas singelas da vida, o sentimento de irmandade com os pobres e a indignação com a miséria vêm da mesmíssima raiz de humildade. É uma maneira de ver e de estar diante do mundo.
Homem de esquerda, foi um crítico feroz de Getúlio Vargas e sofreu com a perseguição do Estado...15 mar 2022
Guilherme Tauil
Desapontada, a moça se queixou com o amigo Rubem Braga. Ela tinha conhecido um poeta, chegado do cronista, que nada tinha de poético no convívio. Reclamou que “no tempo em que esteve em sua mesa, não lhe ouviu uma palavra sobre poesia” – pelo contrário. O poeta só falou de sapato, carro e futebol. Nada mais desestimulante para quem esperava ouvir sobre a grande obra de Shakespeare. “Nunca falam os poetas de poesia?”, quis saber.
“Bem, eles falam”, respondeu Braga, também ele um poeta, ainda que bissexto. “Mas acontece que, além de ser um homem como os outros, e sem deixar de sê-lo, ele tem isso de grave e especial que é ser um homem a quem tudo concerne e de tudo tira seu mel e seu fel.” Tudo é matéria do poeta...28 fev 2022
Guilherme Tauil
Eis que Paulo Mendes Campos se torna centenário. O cronista, tradutor e poeta, sobretudo poeta, chegou ao mundo via Minas Gerais, em 28 de fevereiro, numa terça-feira de Carnaval. Sua crônica, inconteste, é merecedora de grandes celebrações. Mas, não sendo possível dedicar mais do que alguns parágrafos ao aniversariante, fica acertado que esta comemoração é apenas um breve sobrevoo em torno de sua prosa – ou melhor, de seus poemas em prosa.
Afinal, Paulo Mendes Campos é o mais poeta dos cronistas. Às vezes, chega até a subverter a pontuação para alcançar certas imagens líricas, quase como se escrevesse em versos. É claro que, depois da sinfonia barulhenta do modernismo, todo cronista pôde se valer dessa saborosa dissolução...15 fev 2022
Guilherme Tauil
Oh, Minas Gerais! Quem te conhece não esquece jamais, diz a canção adotada como hino informal do estado. “Conhecer”, neste caso, certamente significa “visitar”. Mas, se pensarmos na outra acepção do verbo, a de “compreender”, é capaz de reacendermos uma discussão antiga que sempre aparece em nossas letras. De tempos em tempos, alguém se lembra de perguntar o que seria o tal espírito mineiro, esse charme peculiar de uma unidade federativa que não compete às outras 26, e a conversa vai longe, geralmente acompanhada de versos de Drummond, generosas talhadas de queijo e causos bem-humorados.
Em 1992, Otto Lara Resende, natural de São João del-Rei, escreveu um artigo sobre a questão, perguntando-se: Mineiridade existe? Ou...31 jan 2022
Guilherme Tauil
Dentre as Coisas deleitáveis que Paulo Mendes Campos enumerou, além de “arrancar os sapatos depois do baile” e “foto em que a gente fica mais bonito do que é”, está um “cigarro depois do café da manhã, sobretudo de manhã fria, no interior”. O leitor que fuma há de concordar com o cronista. O que não for chegado, bem, esteja avisado de que, hoje, é melhor tapar o nariz e tomar alguma distância para evitar a fumaceira – mas não a ponto de perder de vista essas preciosas crônicas sobre o hábito de fumar.
Sem pedir licença aos antitabagistas, Otto Lara Resende fez o elogio da última tragada em A guimba e o reflexo – aquela que “desce pela árvore brônquica e, perfumada, se infiltra pelas vísceras e acelera o ritmo...14 jan 2022
Guilherme Tauil
Foi na festa de casamento de Di Cavalcanti que Rubem Braga conheceu aquela jovem. “Uma alta e bela moça”, com 20 anos de idade, que pintava autorretratos desde os 14. Por acaso, alguns desses pequenos quadros a óleo estavam no salão e Braga, ao observá-los, foi fisgado pela implacável consciência do tempo. Movido pelo “jogo delicado entre o olhar que vê e o olhar contemplado”, o cronista se pergunta se, assim como a face reproduzida foi se alterando ao longo dos anos, também já não seria outro o modo de ver daquela menina, a “maneira de sentir a si mesma”. Com quase 40, Braga, que se tratava por velho desde moço, desata a projetar nas telas tudo o que ainda aguardava a jovem pintora: pensa nos reflexos “que as luzes...30 dez 2021
Humberto Werneck
Você abre seu jornal, sua revista, no impresso ou no digital – e dá de cara com a surpresa ruim: cadê o meu, cadê a minha cronista do coração? Aconteceu o que se dá com qualquer escriba. Um dia, some, seja por fastio, literário ou não, seja por haver batido asas para além da imprensa, batido asas deste mundo. Nunca mais, no gênero ao menos, uma palavra daquele ou daquela de quem você, sem se dar conta, acabou docemente dependente. O consolo é saber que a criatura não se foi sem nos deixar uma “última crônica”.
Ou até mais de uma, no caso talvez sem similar de Lima Barreto. Quando ele morreu, em 3 de novembro de 1922, sua “última crônica” parecia ser Novos ministérios, estampada três semanas antes na Careta...30 nov 2021
Humberto Werneck
Às voltas com uma crônica que precisa escrever, mas que reluta em descer ao papel, Rubem Braga caminha à noite sob a chuva, e, antes de buscar abrigo no café da esquina, repara no casal que namora na calçada, indiferente ao aguaceiro. A crônica, que dali a pouco finalmente vai brotar, será devedora dos amantes empapados de ternura e chuva, mas de outro par também – as duas bagaceiras que o cronista sorveu para melhor saborear aquele amor à prova d’água.
Já em Uma conversa de bar, o Braga é mais que simples observador. Lá está com a moça, os dois envoltos numa penumbra que é também da alma, pois sobre eles paira uma certeza não enunciada, porém dura, mais que isso, inapelável. Tão penosa que, à falta de palavras, ele...29 out 2021
Humberto Werneck
Lá está ela, metida num vestido preto de mulher antiga, junto ao guichê de uma casa de câmbio, de onde saem maços e maços de dinheiro. Você passou pelo título, A velha, e acredita estar diante de mais uma personagem que o maior de nossos cronistas vai retratar com inimitável combinação de delicadeza e força.
Será? Dois moços, jornalistas “sem um tostão no bolso, desanimados e calados”, repararam nela – e vão roubar a cena. O jovem Braga (sim, é uma história acontecida) e seu amigo Zico a veem sair para a rua com sua bolsa estufada, e, sem uma palavra, se põem a segui-la por um cenário deserto, tão deserto que bastará um gesto rápido para aplacar por um bom tempo os seus tormentos financeiros.
Enquanto você vai...15 out 2021
Humberto Werneck
O chato faz muito calor. Foi Jayme Ovalle quem disse, e a observação tem validade universal, se aplica até aos esquimós, a tiritar em seus iglus, pois da chatice não há povo que escape. E haja leque e ar-condicionado para encarar essa deplorável porção da espécie humana, infelizmente numerosa, merecedora de um livro inteiro, o best seller Tratado Geral dos Chatos, de Guilherme Figueiredo (1915-1997). Difícil saber quem comprou mais, se os chatos ou não-chatos. O problema é distinguir um do outro. Foi o que deu a entender Paulo Mendes Campos em Tipos exemplares, sobre categorias variadas de gente aborrecida, azucrinante, aperreante, fastidiosa, importuna, maçadora, tediosa ou sacal, para citar apenas alguns dos 32 adjetivos...30 set 2021
Humberto Werneck
Nada como um bom cronista, e aqui temos um punhado deles, para apanhar no chão do dia a dia alguma aparente miudeza, e a partir dela compor um palmo de prosa capaz de atravessar a circunstância e, sem data de validade, seguir encantando leitores presentes e futuros. Impressões, sutilezas, pequenos fatos, ou mesmo fato algum. E, é claro, personagens, pois também não há como um bom cronista para garimpar tipos interessantes no cotidiano.
É o que não falta, benza Deus. Gente notória ou obscura, figurões, figurinhas, – aqui temos de tudo. Quem julgava saber tudo sobre, digamos, Severo Gomes (1924-1992), empresário e político paulista falecido naquele acidente de helicóptero em que morreu também Ulysses Guimarães, e com os dois,...15 set 2021
Humberto Werneck
Se tudo pode dar crônica, dependendo, é claro, das artes de quem a escreva, por que o rol de temas não incluiria a palavra, logo ela, instrumento e matéria-prima dos escribas? E não venham dizer que tomá-la como tema seria recurso de autor em crise de falta de assunto. Palavra é assunto, e como!
Sempre foi, aliás. Penso aqui, para começo de conversa, em Machado de Assis, um dos pioneiros do gênero entre nós. Em 1877, o Bruxo do Cosme Velho deliciou seus leitores – e segue deliciando os que vieram depois – com três crônicas em que zombou da xenofobia vocabular do professor Antônio de Castro Lopes (1827-1901). Hoje esquecido, esse xiita do idioma se arrepiava inteiro à simples ideia do contágio do português por palavras...31 ago 2021
Humberto Werneck
Com todas as coisas boas que nos trouxe – entre elas, a garantia de originais impecáveis, mesmo após muita mexida –, a escrita no computador deixou em alguns de nós, o pessoal (me inclua nessa) chegado numa arqueologia literária –, uma coisa ruim: como saber, agora, por onde veio o autor até o texto definitivo, se já não se usa entregar páginas recobertas de rabiscos e garranchos, matéria-prima da crítica genética, tão fascinante quanto reveladora? Já não dá para saber como foi que se deu o trabalho de “despiorar” um texto, para usar aqui uma invenção verbal do perfeccionista Otto Lara Resende. Despiorar romances, contos, poemas, ensaios – e também, por que não?, crônicas, pois, embora escritas no sufoco dos deadlines...16 ago 2021
Humberto Werneck
Jamais se saberá se Lima Barreto comprou alguma coisa naquela manhã de 1921 em que saiu de casa, no Méier, rumo a uma feira livre, novidade que um burocrata do Ministério da Agricultura, Dulfe Pinheiro Machado, futuro ministro de Getúlio Vargas, implantara no Rio de Janeiro. Cronicamente desmonetizado que era, o mais provável é que nosso escriba não tenha comprado nada – muito menos umas bruxas de pano, recheadas de serragem, que lhe pareceu destoarem num território supostamente exclusivo de verduras e legumes.
Até então encantado com a “lindeza de moças e senhoras”, relata Lima Barreto em Feiras livres, ficou muito irritado – e, bem mais que ele, o vendedor das tais bruxas, deflagrando um bafafá que requereu a presença...30 jul 2021
Humberto Werneck
Amor realizado é com certeza o que há de bom, mas – desculpe se desafino o coro dos felizes – nem sempre dá literatura boa. Ou você acha que Shakespeare teria perdido o tempo dele contando uma história de Romeu e Julieta com happy end? Teria, quem sabe, se limitado a registrar o fogaréu inicial de uma paixão – como fez, mais perto de nós no tempo e no espaço, o cronista e poeta Paulo Mendes Campos, ao falar do casal que em plena tarde, numa cidadezinha, faz crescente a sua lua de mel, enquanto o mundo lá fora gira prosaico em outra direção.
Levemos adiante a provocação. José Carlos Oliveira não teria escrito Entre aspas se tivesse juntado os panos com aquela que julgava ser a mulher de sua vida, “extremamente...15 jul 2021
Humberto Werneck
Neste momento em que boas novidades parecem ter virado raridades, é uma alegria poder anunciar que nosso Portal acaba de ser enriquecido com um novo lote de crônicas de Fernando Sabino, e que muito em breve outras tantas estarão aqui incorporadas.
Alegria, pois, e das graúdas, à altura de um dos mais indiscutíveis mestres da crônica brasileira. Chega a dar inveja de quem vai pela primeira vez mergulhar na sua copiosa e bem peneirada produção no gênero, com um prazer comparável ao de quem, a partir da década de 1950, “descobriu” Sabino em jornais do Rio, com frequência às vezes diária – ou, mais caprichado ainda, na Manchete, revista que se dava ao luxo, hoje inimaginável, de trazer também, toda semana, Rubem Braga,...30 jun 2021
Humberto Werneck
Paulo Barreto, o João do Rio, a partir de agora incorporado ao time do Portal da Crônica Brasileira, é merecedor, também aqui, não de um, mas de dois tapetes vermelhos, um para cada enorme contribuição que nos deixou, na dupla condição de cronista e de repórter. Numa atividade como na outra, assinando-se bem pouco com seu nome de pia, e sim com um punhado de pseudônimos, dos quais o mais conhecido é João do Rio, o escritor carioca, falecido aos 41 anos há pouco mais de um século – 23 de junho de 1921 –, foi não somente um craque como um notável inovador.
Não há exagero em considerá-lo, na história da imprensa brasileira, o primeiro repórter genuíno, diferenciado de seus pares num tempo em que a maioria dos jornalistas,...15 jun 2021
Humberto Werneck
Os tempos, claro, são outros, nem sempre melhores, a imprensa, também – e o fato é que, nostalgia à parte, nunca mais tivemos, nos domínios da crônica, uma fase de ouro como aquela que cintilou da metade dos anos 40 a meados dos 60, com brilho mais intenso na década de 50.
O leitor dispunha então de uma boa dúzia e meia de cronistas, vários deles entre os melhores que o gênero já nos proporcionou. Só na Manchete, revista semanal criada em 1952, havia quatro, e veja quem: Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino, além de Henrique Pongetti, que, sem ombrear com eles, nem por isso fazia feio. Também toda semana, Rachel de Queiroz acostumou muita gente a começar pela última página a leitura de O Cruzeiro... 1 jun 2021
Humberto Werneck
É bem possível que Paulo Mendes Campos sofresse de – vá desculpando a brincadeira com as palavras – insônia crônica, pois foram muitas as ocasiões em que tomou o tema como assunto em seus escritos. Numa delas, o sono decepado pôs para rodar um filme, não na televisão, como fazem tantos em madrugadas de vigília incontornável, e sim na inesgotável cinemateca da memória. Pois sua insônia, contou ele, vinha a ser “um vasto mural no tempo, composto de quadros díspares e desordenados”, cuja unidade era “um fiozinho mínimo e invisível dentro da Noite”: o próprio Paulo. Um filme que, daquela vez ao menos, principiava com uma fotografia em que, menino, ele posava ao lado da mãe, junto ao muro de um cemitério, Freud explicaria?...