Paranoia: "..fios telefônicos cruzam-se no meu esôfago", 1963. São Paulo. Wesley Duke Lee/Acervo Instituto Moreira Salles.
Em 1916, no Rio de Janeiro, o sambista Donga cantou que, pelo telefone, o chefe da polícia mandava avisar que na Carioca tinha uma roleta para se jogar. Quinze anos depois, Carlos Drummond de Andrade registrou a chegada do telefone automático em Belo Horizonte, numa série de crônicas publicadas no Minas Gerais. Ao leitor de pouca idade, explico: houve um tempo em que as ligações eram mediadas por uma telefonista, sentada em sua cadeirinha na central telefônica, responsável por manualmente conectar duas linhas, num processo que poderia levar horas ou até mesmo o dia todo.
No dia 23 de setembro de 1931, os belo-horizontinos demitiram suas telefonistas e passaram a ligar diretamente uns para os outros com seus telefones de disco – o ápice da tecnologia. Era um tal de “Alô! Quem fala?” sem fim. O novo prazer da cidade consistia em “retirar o fone do gancho; ouvir o ruído de chamada, discar um-zero-um-quinze; e indagar que fita levam hoje no cinema”. Toda a gente se divertia “com o telefone automático, achando a coisa mais engraçada do mundo escutar a voz que veio sozinha, sem que ninguém ligasse”. Era um “contentamento infantil” generalizado, o povo “discando para todas as pessoas conhecidas, consultando nervosamente o catálogo” telefônico e “pedindo informações à Companhia”, sem nenhuma necessidade.
Pendurados na linha, todos passaram a ter “negócios urgentes a tratar”. E o negócio era esse: “exclamar alô, quem fala, ouvir a resposta, dizer duas palavras alegres e dependurar o fone no gancho”. Muita gente “discou ao acaso – para verificar se o aparelho estava funcionando bem, explicava – e tendo verificado que felizmente o aparelho estava perfeito, discava outro número”, só para ter certeza. “A cidade anoiteceu otimista”, e não havia “quem não tivesse uma palavra amena” para seus semelhantes, de modo que “às 23 horas, todos os assinantes estavam íntimos uns dos outros e desejavam-se mutuamente boa-noite e felicidades” – “o anjo da paz velava sobre a rede dos automáticos, abençoando essa grande invenção humana”.
Mas o anjo trabalhou pouco. No dia seguinte, Drummond, um exímio passador de trotes, decretou que dali em diante “os trotes telefônicos não terão mais graça nenhuma”, porque perderam sua “expressão cordial, afetuosa, meiga” de brincadeira besta. Com a facilidade das ligações diretas, Os trotes estavam estremecendo matrimônios: “Há indivíduos perfeitamente mal-educados que se permitem a inconveniência de discar para a residência de cavalheiros respeitáveis, na ausência destes, para comunicar às suas respectivas esposas certos detalhes da vida dos mesmos” – nem sempre verídicos, mas geralmente sim. O cronista achava que ninguém deveria meter o bedelho em casamento alheio, e que não convinha à mulher saber que seu marido era um traste. Porque disso “resultam sempre pequeninas contrariedades que muitas vezes envenenam um jantar familiar”, e a ceia pacífica em família seria “uma das instituições patriarcais que nos cumpre defender a todo transe”.
Mas ninguém deu bola para o protesto do cronista. Alertadas pelos trotes, as esposas fizeram dos telefones um verdadeiro Sistema de controle de maridos. “De meia em meia hora” os aparelhos “das repartições e dos escritórios retinem perguntando pelo sr. X”. A voz, querendo saber “se o sr. X está, e, se saiu, para onde foi e quando volta”, é sempre de mulher. O ponto de trabalho passou a ser marcado “pelo tímpano dos telefones automáticos” – e, assim, “a vida ficou mais difícil”, “as tardes perderam o azul” e “os maridos perderam a graça”. Quem sabe não terá sido pensando nisso tudo que o poeta lamurioso, quase uma década mais tarde, escreveu o verso “Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear”.
Mas nem todo homem fugia de telefonemas. Alguns, pelo contrário, os aguardavam ansiosamente. Era o caso de Afonso, flagrado num restaurante por Antônio Maria. Da mesa de frente, o cronista observou sua odisseia patética. Depois de pedir bife de grelha e salada, Afonso avisou ao garçom: “Uma pessoa vai me chamar ao telefone. Mulher. Avise o rapaz do caixa”. Decerto o homem estava feliz, “porque pediu salada”. Quando as pessoas estão felizes, “podem comer tomates, alfaces e até aipos”. Já os infelizes “necessitam de proteínas e comem, vorazmente, feijão, arroz, batatas fritas, farofa, carne e toucinho – tudo misturado”.
A mulher em questão, imaginou Maria, devia ser uma “amante recente”, por quem Afonso comia salada. Por quem “fez a barba e passou loção no rosto” – os homens, no geral, “acreditam muito no terno, na gravata, na barba e nas loções de lavanda”. Nunca houve, no entanto, uma mulher que tivesse se casado com alguém “por causa da loção”.
O telefone tocou e o homem gritou: “Se é para Afonso, sou eu”. Não era. Era para o Rodrigues, “que é gordo, está sem paletó e usa suspensórios”. Aflito, Afonso deve ter pensado “na falta de gosto de uma mulher que telefona para um homem gordo, sem paletó, que usa suspensórios, chamado Rodrigues”. Por mais cinco vezes o telefone soou, dando esperanças à alma apaixonada. Mas nenhuma era para ele. Na sexta vez, o caixa perguntou como era mesmo o seu nome. A espera, parecia, tinha chegado ao fim. Mas era por um tal de Alcino que procuravam.
Nessa altura, o garçom já trazia o café e a conta. Afonso “tomou o café, pagou, fumou um lento cigarro e levantou-se”. Antes de sair, disse ao caixa: “Se ainda telefonarem, diga que esperei o mais que pude”. Resignado, ia ganhando a calçada quando ouviu o telefone soar de novo. Por pouco não perdera a chamada, tivesse fumado mais depressa e agora já estaria distante. O homem voltou correndo e olhou para o caixa. Aos poucos foi “empalidecendo, desesperançando-se” à medida em que compreendia as palavras burocráticas que eram ditas ao telefone. Não era sua amada. Pobre Afonso. Os homens, no geral, “acreditam muito no terno, na gravata, na barba e nas loções de lavanda”.