Fonte: Crônicas: 1930-1934,  de Carlos Drummond de Andrade, Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais-Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais, 1987.

A partir de hoje, domingo, fica estabelecido que os trotes telefônicos não terão mais graça nenhuma. Faço esta declaração porque, de anteontem para ontem, os trotes perderam toda a espiritualidade. Até então, eles tinham uma expressão cordial, afetuosa, meiga. Eram pessoas que se perguntavam se ia chover no dia seguinte ou se o bonde Paraúna é perigoso para a saúde. A gente respondia mandando passear em Sabará, de automóvel. Dependurava-se o fone com simpatia. Passar um trote era um prazer. Ser troteado era outro.

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Agora as coisas mudaram de figura. Há indivíduos perfeitamente mal-educados que se permitem a inconveniência de discar para a residência de cavalheiros respeitáveis, na ausência destes, para comunicar às suas respectivas esposas certos detalhes da vida dos mesmos, que de modo algum interessam às esposas. Considero isso um desprimor. Por muito desonesto que seja um marido (e geralmente os maridos brasileiros não o são), não vejo conveniência em que sua mulher o saiba. Daí resultam sempre pequeninas contrariedades que muitas vezes envenenam um jantar familiar. Ora, o jantar em família, em plena paz, é uma das instituições patriarcais que nos cumpre defender a todo transe.

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A pessoa que disca para a casa de um pobre homem, para dizer à mulher que ele a está traindo, naquele mesmo instante, num automóvel verde no caminho da Lagoa Santa, é, positivamente, uma criatura diabólica. O que ela pratica tem um nome feio: chama-se golpe à traição. Nunca se deve golpear um homem pelas costas. Nem pela frente. Nem pelo telefone automático.

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Tenho esperança de que daqui a um mês ou dois as coisas melhorem. Isto é, que as pessoas desocupadas de Belo Horizonte deixem esse feio hábito de denunciar osinocentes maridos às suas dedicadas esposas. Tudo se deve fazer para acabar com um hábito mau. Inclusive a propaganda pelos jornais, nos letreiros do cinema, nos cartazes de bonde.  Ao lado de “Cuspir e escarrar no chão — é falta de higiene e de educação ponha-se “Jamais se deve perturbar — a deliciosa harmonia do lar”, ou então: “Os maridos já são criaturas carregadas de preocupações. Deixem-nos em paz, com os seus pecados”.

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Provisoriamente, enquanto não se obtém esse resultado, proponho que se deixe de achar graça nos trotes telefônicos. Mesmo que a voz seja bonita e esteja indicando uma jovem mais bonita ainda. Mineiro é bicho desconfiado. Na dúvida, não atenda. Se insistirem, não atenda. E em caso extremo, mande chamar o guarda-civil, quebre o aparelho, tire o telefone de casa, mas não atenda, não atenda, não atenda.

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