Fonte: Crônicas: 1930-1934,  de Carlos Drummond de Andrade, Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais-Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais, 1987.

Ontem às 14 horas, toda gente começou a discar, e está discando até agora. É o prazer da cidade: retirar o fone do gancho; ouvir o ruído de chamada; discar um-zero- um-quinze; e indagar que fita levam hoje no cinema; ou perguntar a um amigo se sabe jogar golfinho; ou a uma amiga, se ela não sabe que vestido vermelho dá dor de cabeça. Trotes afetuosos, sem malícia. Em síntese, Belo Horizonte diverte-se com o telefone automático, achando a coisa mais engraçada do mundo escutar a voz que veio sozinha, sem que ninguém ligasse. Há um contentamento infantil nas pessoas que inauguraram ontem oficialmente o seu telefone particular, discando para todas as pessoas conhecidas, consultando nervosamente o catálogo, pedindo informações à Companhia.

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Parecia que todo mundo tinha negócios urgentes a tratar. Entretanto, o negócio único era esse: exclamar alô, quem fala, ouvir a resposta, dizer duas palavras alegres e dependurar o fone no gancho. A cidade anoiteceu otimista. Não havia quem não tivesse uma palavra amena para os conhecidos. E até para os desconhecidos. Muita gente discou ao acaso — para verificar se o aparelho estava funcionando bem, explicava — e tendo verificado que felizmente o aparelho estava perfeito, discava outro número, para fazer a mesma pergunta carinhosa e ter a mesma certeza consoladora.

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Assim o telefone automático aproxima os homens e transforma o disco num símbolo de solidariedade. Às 23 horas, todos os assinantes estavam íntimos uns dos outros e desejavam-se mutuamente boa-noite e felicidades. Pareciam cessadas as comunicações. O anjo da paz velava sobre a rede dos automáticos, abençoando essa grande invenção humana. Nisso um assinante com dor de dentes discou para uma farmácia da rua Tamoios. O farmacêutico, que estava dormindo, acordou com o ruído doce e constante da campainha chamando. O sofredor perguntou-lhe se havia no mundo um remédio, humano ou divino, que matasse na cabeça a sua dor de dentes. Do contrário ele é que se matava imediatamente. O farmacêutico respondeu, com brandura, que tivesse fé em Deus, que fizesse um gargarejo com água morna e enrolasse um lenço no queixo. E, pondo o fone no lugar: “Tenha fé em Deus! Olhe que o telefone automático é uma grande invenção. Se não fosse ele, o sr. não poderia desabafar comigo a esta hora tardia. Boa-noite, meu irmão”. “Obrigado, meu irmão. A dor já passou”.  A dor tinha passado, automaticamente.

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