Pelada de cronistas

Menino na arquibancada do Maracanã, na final da Copa do Mundo de 1950, Rio de Janeiro-RJ, 1950. Foto de José Medeiros/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Apita o juiz e a bola sai com João do Rio, convidado a visitar o campo do Fluminense num domingo de sol. O tricolor carioca tinha apenas três anos de existência e o futebol, acredite, não era paixão nacional. O campo nas Laranjeiras, “igual e verde como uma larga mesa de bilhar”, estava ainda cheio de pedreiros trabalhando “ativamente na construção das galerias e arquibancadas”. “Moças de vestidos claros”, perfumando “o ambiente com o seu encanto”, e “cavalheiros sportsmen, de calça dobrada e sapatos grossos”, estavam lá para assistir à partida amistosa. Para cada “seis palavras nossas”, os rapazes soltavam três em inglês. Na verdade, todos falavam uma porção de inglês naquela tarde multicor – no céu “de um azul hortênsia”, o sol que morria dourava “todo o prado de uma luz flava”, e os moços, “uns de camisa riscada, outros de camisa sangue de boi”, coloriam “violentamente o campo de notas rubras”.

Para João, dono de um faro jornalístico impressionante e sempre sensível a nuances comportamentais, era nítido que O foot-ball, como se grafava, estava preparado para “absorver todas as atenções”. A mocidade toda “só falava em pelota”, só queria saber “dos matchs de foot-ball, de goals, de shots, numa algaravia técnica de que resultam palavras inteiramente novas no nosso vocabulário”. “E como a mocidade é irresistível”, era uma questão de tempo até todo mundo se interessar pelo novo esporte – ou melhor, sport.

Diante da novidade, o cronista descreveu o amistoso com interesse de escritor: “A bola amarela voava impelida pelos pés e pelas cabeças dos dous teams”. Os jogadores, com “as faces afogueadas, as mandíbulas inferiores avançando numa proeminência de esforço”, “atiravam-se cheios de ardor para a vitória”. A bola rolou até o fim do dia, quando “o céu, já de todo sem sol, tinha no poente nuanças de nácar e de madrepérola”. Indiferente “à tristeza do ocaso”, a mocidade seguia gritando “no verde campo vasto o impetuoso prazer da vida”.

João do Rio toca para José Carlos Oliveira, que, quase 60 anos depois, constatou que “nove em dez pessoas – sem consideração de sexo, idade ou classe social – ainda se acham na mais completa ignorância” em relação às regras do futebol. O jeito foi escrever um Manual do torcedor para educar a população, com entradas didáticas do tipo “FUTEBOL – Embora dele participem numerosos pernas-de-pau, e dois ou três quadrúpedes, o futebol deve ser preferivelmente jogado por bípedes implumes. No decorrer de cada partida, esses atletas devem chutar vigorosamente qualquer coisa redonda que encontrem pela frente. Quando coincidir que a coisa redonda seja uma bola de couro, teremos o futebol propriamente dito”.

Bola, “também chamada pelota”, todo mundo conhece. Mas, por via das dúvidas, o cronista achou bom dar a ela um verbete próprio: “BOLA DE COURO – Quando recebe um chute, tem o dom de se dirigir aos lugares mais inusitados. Geralmente bate na cabeça do fotógrafo que está sentado ao pé da trave”. E, importante: “Sem bola não há futebol; mas sem futebol pode haver bola”.

Do meio de campo, Carlinhos Oliveira encaixa para Paulo Mendes Campos, que mata no peito e reflete sobre a danada. A bola, justamente, é “o brinquedo mais perfeito que jamais foi inventado”. Superando “a área da infância e da juventude”, ela “entrou para o reino dos adultos, movimenta multidões e dinheiro”. Perto dela, “o mais perfeito trem elétrico de brinquedo é apenas uma afetação inventiva”. A bola é o “clássico, perfeito, o brinquedo ideal que se procurava”. Por isso mesmo, aquela de salão, que não quica, “pode ser funcional, mas é uma invenção tristonha”.

Paulo também se lembrou de uma crônica de Rubem Braga, que “ia em maré de melancolia por uma rua, quando a bola da pelada dos garotos sobrou para ele, que emendou de primeira com muita felicidade, um tiro bonito, aplaudido pelos meninos. O chute não chegou a ser uma solução para as suas mágoas, mas foi um consolo”. Afinal, dar um belo chute, “sobretudo na maturidade, é sempre uma alegria”.

O passe final é para Stanislaw Ponte Preta. Da janela, o cronista via “os garotos no pátio do colégio, durante o recreio”. Ao sinal sonoro do intervalo, ele parava de trabalhar para observar a criançada, “como se estivesse no recreio também”. No centro do pátio, um padre “com uma bola de futebol novinha debaixo do braço” dividiu os meninos em dois grupos. Definidos os times, o padre posicionou a bola no meio do campo, “se ali houvesse um campo demarcado”, e supervisionou “um par ou ímpar entre os dois centroavantes”.

Ao apito do juiz, a pelada começou. “Futebol de garoto é muito mais de ataque do que de defesa”, com a sanha da juventude toda à flor da pele. Bem que “os técnicos do nosso futebol” podiam “aprender muito com o futebol de garoto”, onde o que conta “é marcar mais gols, e não – como querem os ditos técnicos – sofrer menos gols”. Não à toa, o placar da partida, naquele momento, era 14 a 13. E talvez os números dobrassem se não tivesse soado a campainha do fim do recreio.

“Pouco a pouco os meninos vão retornando para suas salas”, e “o padre ficou sozinho no pátio”. Botou a bola debaixo do braço com “um ar sério e compenetrado”. Mas, de repente, olhou pros lados, certificando-se de que estava sozinho, e jogou a bola para cima. Controlou a redonda no peito, deixou quicar no chão, driblou um zagueiro imaginário, levantou a batina e cravou bonito no cantinho do gol. Era o primeiro Gol de padre que Stanislaw Ponte Preta testemunhava. Só faltou, “ao baixar novamente a batina, voltar correndo para o meio do campo, com os braços levantados a gritar: Gooooooooollll!!!!”.

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Nota do editor: Para o leitor que tem fome de bola, recomendamos a leitura de “A escrita entre as quatro linhas”, de Humberto Werneck, onde constam destacadas mais crônicas do nosso Portal sobre futebol.