Rubem Braga escreveu há muito tempo uma crônica cuja situação permaneceu em minha memória: ia em maré de melancolia por uma rua, quando a bola da pelada dos garotos sobrou para ele, que emendou de primeira com muita felicidade, um tiro bonito, aplaudido pelos meninos. O chute não chegou a ser uma solução para as suas mágoas, mas foi um consolo. Dar um chute bonito, sobretudo na maturidade, é sempre uma alegria.
*
Escrevo com uma bola sob os pés, uma bola preta. Os fabricantes só agora descobriram que o preto era mais indicado para o futebol de areia. Aliás, não jogo em areia, mas não tinha outra. Entre esta bola e a última que comprei, está toda a minha vida. Quando tinha 11 anos, comprei minha primeira bola de couro e fundei um time. Estávamos jogando, quando o menino que me vendeu a bola, sem devolver o dinheiro, surgiu atrás de uma moita, pegou a bola e saiu correndo. Fernando Homão o alcançou, tomou-lhe a bola e deu-lhe um corretivo. A bola preta, que eu fitava há pouco, transformou-se em bola de cristal, e vi com nitidez esse episódio antigo.
*
O brinquedo mais perfeito que jamais foi inventado, a bola. Ultrapassou a área da infância e da juventude, entrou para o reino dos adultos, movimenta multidões e dinheiro. O mais perfeito trem elétrico de brinquedo é apenas uma afetação inventiva perto da bola: esta é o brinquedo clássico, perfeito, o brinquedo ideal que se procurava. Por isso mesmo, aquela bola que não quica, de futebol de salão, pode ser funcional, mas é uma involução tristonha. E razão tinha um amigo meu que pegou pela primeira vez uma bola daquelas e comentou com sarcasmo: “Isso só podia ser invenção de tijucano”. Isto é, de gente sem espaço, sem praia.
*
As nossas peladas adultas começaram no quintal de um apartamento térreo, em Ipanema. Um flamboaiã jogava de beque central de um lado, uma palmeirinha do outro. O primeiro me deu uma vez uma canelada, que só não me partiu a tíbia por milagre. Depois passamos a jogar no terreno de um laboratório na rua Marquês de São Vicente. Um companheiro nosso, homem de recursos, decidiu aproveitar uma parte de um loteamento seu para construir um campo... legal. Foi um Deus nos acuda, a maioria de seus amigos não entendia nada, o engenheiro responsável pelas obras estava perplexo e desconsolado. Um campo de futebol?! Mas você está falando a sério? Mas vai gastar esse dinheirão todo para fazer um campo de futebol?! — Estes que não entenderam o campo tinham perdido irremediavelmente a infância, isto é, o sentimento da dádiva da vida.
*
Rilke foi o poeta que melhor intuiu os símbolos contidos na bola e no jogo da bola: a lei da gravidade e a liberdade do voo são valores atuantes da realidade humana; atirar e agarrar são formas do comportamento do homem diante da existência. E antes dele (citado por Buiytendijk) o pedagogo Frobel escreveu: “A esfera é para mim um símbolo da plenitude realizada; é o símbolo de meus princípios fundamentais de educação e de vida, que são do tipo esférico. A lei esférica é a lei fundamental de toda formação humana verdadeira e satisfatória”.
*
Buiytendijk, a respeito do aparecimento da bola que quica no decurso da história: “Constitui uma grande descoberta cultural”.
*
E do mesmo autor (em Le Football) esta anotação que se refere ao motivo do júbilo de Rubem Braga naquele dia do chute bonito: “Dois meninos jogam bola na rua. Um transeunte — um senhor de idade, por exemplo — recebe a bola bem à sua frente. Que irá fazer? Todos nós o sabemos por experiência: dar um golpe com o pé na bola, aparentemente para prestar um serviço aos meninos que brincam, mas, certamente, não apenas com essa finalidade. Ele o faz antes de tudo porque não pode fazer de outro modo, porque é uma agradável sensação golpear a bola com o pé, devolvê-la, ficar vendo a bola rolar em direção inversa — e isso pela intervenção de sua própria vontade. Vemos com muito gosto alguém a fazer isso, e o motivo é que nós mesmos gostaríamos de fazê-lo e que nesse gesto já encontramos prazer”.