16 out 2020
Humberto Werneck
Daqui para a frente, nesta era do e-mail e do WhatsApp, neste tempo de comunicações instantâneas também por escrito, não se sabe bem como será – mas entre os escribas de outras épocas, uns mais, outros menos, sempre teve raízes poderosas o hábito de escrever cartas, muitas das quais vieram a constituir parte relevante da obra de seus autores. Mário de Andrade é apenas o exemplo mais radical de missivista contumaz. Há muitos outros.
No nosso Portal, inclusive, abrigo de um escrevinhador de cartas cuja compulsão epistolar só se pode comparar à de Mário: Otto Lara Resende, de cuja fartíssima correspondência ativa, até agora, apenas uma primeira e suculenta amostra chegou às livrarias, nas mais de 400 páginas de O Rio é tão longe...30 set 2020
Humberto Werneck
Vários dos cronistas de nosso Portal fizeram da boa mesa uma de suas mais apetitosas musas, e não deixa de ser curioso o fato de que, entre eles, quem mais tangeu essa lira específica foi justamente um magro, o mineiro Paulo Mendes Campos. Nada indica que ele fosse parco em carnes porque jejuasse – ao contrário, basta ver o ardor de gourmet, eventualmente de gourmand, glutão em francês, com que Paulo proseou sobre comida (e, mais ainda, bebida). Se pilotava um fogão, não se sabe, mas dúvida não há de que no garfo & faca, além da escrita, ele era um craque. Quem mais, no afã de explicar a uma “gringa” – provavelmente a inglesa Joan, com quem se casou – o que vem a ser um bolinho de feijão, essa versão...11 set 2020
Humberto Werneck
Além de romancista graúdo, e sabe disso quem leu Triste fim de Policarpo Quaresma, ou Recordações do escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto era um cronista dos bons – mais do que isso, era um cronista puro-sangue, desses que nos proporcionam a gratificante sensação de estarmos sentados a seu lado num meio-fio, ouvindo-o desenrolar o novelo de uma conversa boa. Aliás, tem tudo a ver a imagem do meio-fio, pois o Lima era um homem das ruas – coisa rara no universo literário de seu tempo, as duas primeiras décadas do século passado, quando escritor era quase sempre um homem de gabinete.
O cronista que agora chega ao nosso Portal tinha os olhos permanentemente postos em sua cidade, o Rio de Janeiro, com sua vida...31 ago 2020
Humberto Werneck
Quando menino, lá na sua Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, Rubem Braga não tinha grande apreço pela nossa Independência, por ter sido proclamada por um português. Nem pela instauração da República, porque lhe dava pena a figura do venerando imperador deposto. Digno de admiração, para ele, era o “conto de fadas” da Abolição da Escravatura, protagonizado por uma princesa, a Isabel, que na sua fantasia era “muito jovem, muito loura e muito linda”. Caiu das nuvens ao saber que a heroína não era nada disso, e jamais se conformou “com aquele seu retrato de matrona gorda”.
No final da adolescência, o Braga possivelmente se decepcionou, por mais de uma razão, quando, vitoriosa a Revolução de 30, Getúlio Vargas...17 ago 2020
Humberto Werneck
Por amor à arte ou pela necessidade de encher o espaço que lhe cabe no jornal ou na revista, ainda mais quando lhe falte assunto, volta e meia um cronista se põe a falar de cinema. Com maior ou menor conhecimento de causa, quase todos, no vasto time dos cultores desse gênero, viram chegar seu momento de crítico ou comentarista da arte cinematográfica. Houve mesmo quem fizesse – Antônio Maria, em "O último encontro" – da sala escura apenas cenário para o fecho de um caso de amor, The End não na tela, mas em duas poltronas na plateia.
Rubem Braga não se improvisava em crítico, mas certa vez, em 1953, recheou sua coluna com considerações sobre “O Cangaceiro”, de Lima Barreto, diretor que ninguém haverá de confundir...31 jul 2020
Humberto Werneck
Quando se sentou para escrever Terra nova, Rachel de Queiroz gostaria de contar “uma história gentil”, sobre “uma família pau-de-arara que deixou as asperezas da catinga nativa pelas grandezas de São Paulo”. Logo, porém, precisou admitir que dali não sairiam “flores”, só “miséria”. Ainda assim, legou-nos uma história bonita, muito digna de ser lida.
Dos nossos cronistas, Rachel talvez seja, ao lado de Rubem Braga, quem mais escreveu sobre gente que trocou por outra a sua terra – não fosse ela mesma uma filha do Ceará que foi parar no Rio de Janeiro. Como acima ficou claro, era sensível ao drama dos desenraizados. A começar pelos africanos reduzidos no Brasil à condição de escravos. Não espanta que Rachel, em...16 jul 2020
Humberto Werneck
Estivessem eles ainda aqui, submetidos à pandemia que nos inferniza desde março, e é bem possível que os cronistas do nosso Portal se vissem hoje, como tantos de nós, impossibilitados de botar o pé na rua. Teriam, assim, o sofrimento adicional de uma rarefação de assuntos para seus escritos. Pois, como sabemos, é em geral lá fora, no mundo, e não entre quatro paredes, que os cultores desse gênero costumam garimpar inspiração. Na falta de poderem sair, nossos cronistas estariam condenados a se bastar com o que houvesse em casa – ainda que se tratasse, também na mesa de trabalho, de provisões congeladas: memórias, velhos temas, empoeirados personagens e acontecimentos.
Tentar imaginar o que eles haveriam de escrever nas atuais...30 jun 2020
Humberto Werneck
Vinicius de Moraes, sentenciou Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, não era um, era muitos – se assim não fosse, explicou, seria o Vinicio de Moral. Nem por isso deixou de ser alguém muito singular. Que o digam, para começar, suas nove esposas, fartura conjugal amealhada ao longo de 67 anos. Para não falar, é claro, de ainda mais fartos “amores contingentes”, como disse Simone de Beauvoir das ligações fugazes ou colaterais. E sobretudo da quantidade de amigos que Vinicius de Moraes deixou quando se foi, faz agora 40 anos, em 9 de julho de 1980.
Vários escreveram sobre o grande poeta – que foi, também, um ótimo cronista, cuja produção no gênero por certo renderia mais que suas deliciosas coletâneas publicadas em...15 jun 2020
Humberto Werneck
Certas crônicas, de tão irretocáveis, podem dar a impressão de que simplesmente fluíram para o papel ou tela, como se o autor, sem qualquer sofrimento, tivesse tido apenas o trabalho de transcrever o que lhe dava a ler um teleprompter da literatura. Desnecessário lembrar que só por milagre poderia ser assim. Não há escritor que não saiba que escrever costuma ser horrível, como disse a americana Dorothy Parker, craque do ofício, e que bom mesmo é “ter escrito”.
Paulo Mendes Campos sabia disso. “Assim como em um edifício não fica sinal do sofrimento dos que o levantaram, assim não vemos além das bibliotecas a raiva dos que as escreveram, os desânimos, os desesperos, o nojo de escrever”, observou ele numa crônica inédita... 1 jun 2020
Humberto Werneck
Temperamento, feitio, inclinação natural para a visada realista que marca sua prosa – o fato é que Rachel de Queiroz dizia não sentir saudade do que quer que fosse. Nada, nenhuma, reforçava ela. Talvez nem mesmo da glória precoce que experimentou aos 19 anos, com a publicação de seu primeiro livro, o romance O Quinze, ou do dia de 1977 em que se tornou a primeira mulher a ser eleita para a Academia Brasileira de Letras. “Não tenho saudade de nada”, conta Rachel na crônica intitulada, exatamente, “Saudade”. “Nem da infância querida”, acrescenta, “nem mesmo de quem morreu”. Para surpresa de muitos, “nem sequer do primeiro dia em que nos vimos” – ela e o médico Oyama de Macedo, seu segundo marido e maior...15 mai 2020
Humberto Werneck
“O psicanalista é uma comadre bem paga”, cravou certa vez Otto Lara Resende, quem sabe para bulir com aquele que foi o seu maior amigo, o psicanalista (e bom poeta) Hélio Pellegrino. E não é impossível que Hélio estivesse na roda de conversa de que Otto fala em “Solução onírica”, na qual o assunto são os sonhos. E haja assunto! “Hoje todo mundo sabe o seu lance de psicologia”, escreve o cronista. “Freud e Jung dão pé para qualquer palpiteiro”. Em dado momento, alguém sugere que cada qual conte um sonho. O de Otto foi sobre um camarada de suas relações, que dera de lhe pedir, com implacável insistência, que encaminhasse um pedido dele ao presidente da Câmara dos Deputados – o Rio era ainda a capital federal,...30 abr 2020
Humberto Werneck
Otto Lara Resende gostava de dizer – e até deixou gravado, em 1981, num texto autobiográfico para o disco Os quatro mineiros – que nasceu num 1º de maio “não por ser Dia do Trabalho, mas por ser feriado”. Só gente mal informada poderia concluir daí que se tratava de alguém avesso ao batente – e para esses haveria um desmentido cravado em 1º de maio de 1991, data em que, chegando a nada juvenis 69 anos de idade, Otto iniciou na Folha de S.Paulo uma colaboração quase diária, só interrompida às vésperas da morte que o levou em 28 de dezembro de 1992. Ele quis que a crônica da estreia se chamasse “Bom dia para nascer” – texto cheio de diabruras bem suas, no qual, lá pelas tantas, se lê sobre outro...15 abr 2020
Humberto Werneck
Brasília, cuja inauguração completa 60 anos neste 21 de abril, foi assunto de cronistas muito antes de começar a sair do papel – mais que isto, muito antes de se saber em que ponto do Planalto Central, exatamente, ela seria construída. Para não descer fundo demais no tempo, fiquemos em 1948, ano em que chegou ao Congresso Nacional o relatório de um grupo de estudos encarregado de opinar sobre o melhor ponto daquela vastidão desértica para se erguer a nova Capital do Brasil – questão que os deputados e senadores só iriam decidir em 1953, quando, ao cabo de arrastada ruminação, a escolha recaiu na região conhecida como Sítio Castanho.
Mais quatro anos se passariam antes que as primeiras máquinas levantassem poeira num ermo...31 mar 2020
Humberto Werneck
Neste momento em que estamos – ou deveríamos estar – enclausurados em casa, muitos de nós sem quem nos faça companhia, há quem sinta falta, também, de palavras que em língua portuguesa deem conta das nuances embutidas na condição de quem está sozinho. Não nos basta, de fato, o substantivo “solidão”, sobrecarregado na empreitada de expressar estados sutilmente diversos. Problema que não tem o idioma inglês, servido por loneliness, aplicável quando a falta de alguém ao lado seja um peso no corpo e na alma, e também por “solitude”, para aqueles casos em que estar sozinho, longe de ser um peso, pode ser desejável. Até existe em português o termo “solitude”, mas como sinônimo menos utilizado de solidão....16 mar 2020
Humberto Werneck
Nascida numa região do Brasil em que tantos vivem de olho nas alturas, na esperança de salvadoras gotas d’água, Rachel de Queiroz um dia se pegou a reclamar justamente daquilo que os céus despejavam então sobre o Rio de Janeiro. Não era para menos: naquele verão de 1947, conta ela em “Chuva”, a impressão que se tinha é de que nunca mais teria fim o aguaceiro que encharcava o antigo Distrito Federal.
A Ilha do Governador, onde Rachel morava, lhe parecia prestes a se dissolver no mar, como torrão de açúcar. “Chuva miúda, chuva graúda, chuva inimiga, fria e molesta, que traz doença”, queixa-se ela numa crônica cujo título só poderia ser... “Chuva”. Não lhe bastasse o dilúvio incessante, numa daquelas noites veio... 2 mar 2020
Humberto Werneck
No momento em que o calendário traz de volta – 8 de março – o Dia Internacional da Mulher, fique aqui a sugestão de peneirar neste Portal um pouco do muito que sobre ela escreveram nossos cronistas. Para descobrir, entre outros achados, que poucos o fizeram com a assiduidade de Rubem Braga, o maior de todos. E descobrir também que, curiosamente, em seus enredos o Sabiá da Crônica quase nunca nos parece estar vivendo um amor correspondido.
No caso extremo de “Sizenando, a vida é triste”, por exemplo, ei-lo deitado, em manhã chuvosa, a imaginar sua inalcançável Joana, “meio tonta de uísque”, aconchegada àquele “palhaço”. A frustração do Braga não chega a tanto ao se ocupar de misteriosa dama, “A primeira mulher...14 fev 2020
Humberto Werneck
Para Antônio Maria, houve um Carnaval em que a ressaca veio antes da farra – se é que para ele teve farra naquele fevereiro de 1941, mês no qual, faltando “uns oito dias” para a folia começar, uma confusão doméstica levou o jovem (20 anos recém-completados) pernambucano a amargar uma noite de cana no Rio de Janeiro. A encrenca só não foi maior, conta ele em “A senha do sotaque”, porque... – bem, não antecipemos o inesperado desfecho da história. É possível que o Maria, por detrás das grades, tenha reencontrado um amargo porém essencial ingrediente das celebrações de rua que viveu em sua terra quando menino e adolescente: “Não tenho a menor dúvida”, diz ele em “Carnaval antigo... Recife”, “de que aquilo...31 jan 2020
Humberto Werneck
Assim como qualquer um de nós, que os lemos aqui na planície, também os grandes cronistas, na volta das férias, costumam trazer lembranças de viagem. A diferença é que, além de souvenirs convencionais, entre elas pode haver recordações em forma de literatura.
Às vezes nem memórias são, mas fantasias que uns dias vividos fora da base têm o condão de atear em nós, em especial quando se trata de profissionais da imaginação.
Penso, ao acaso, em Rachel de Queiroz, viajante que, ao lado de impressões trazidas do estrangeiro – veja “Suíça” e “Ir à Europa”, por exemplo –, algumas vezes se deixou levar, na hora de escrever, por algo que não trouxera na bagagem física. “A criatura”, escreveu ela na crônica...15 jan 2020
Humberto Werneck
Numa crônica prestes a se tornar septuagenária, mas ainda fresca e sem rugas, Rubem Braga fala do dia em que um poeta, dos maiores que tivemos, lhe contou de seu encontro casual, já fazia tempo, com uma bela moça, Maria. Cruzaram-se numa calçada, ele saindo de um bar, melancólico, ela radiante, de braço dado com o noivo – e desse breve encontro lhe ficou alumbramento inapagável: cravados nos seus, uns belos olhos cor de piscina.
Numa conversa com Maria, o cronista relatou o que ouvira do poeta, mas a jovem não se lembrava do encontro. Foi a vez de Rubem mergulhar, fascinado, na piscina do olhar da amiga. Só bem mais tarde, quase trinta anos depois, ao revisitar em seus arquivos aquela crônica de 1952, intitulada “Poeta”, o...31 dez 2019
Humberto Werneck
Como tantos de nós, Rubem Braga decididamente não morria de entusiasmo pelas festas de final de ano, quando menos por aquilo que elas costumam ter de alegria compulsória. Na sua deliciosa rabugice, o Sabiá da Crônica se permitia, em tais ocasiões, externar – por escrito, inclusive – uma quota de antipatia pelo inelutável vagalhão festeiro que a todos ameaça arrastar quando dezembro vai chegando ao fim.
Em “O menino”, por exemplo, de 1952, o Braga admitiu que, para ele e demais “inquietos” e “desorganizados”, as festas de Natal e Ano Novo, longe de serem um prazer, acabam sendo “mais uma providência a tomar”. Na mesma ocasião, classificou de “louco” o fato de “receber votos de feliz Natal e grandioso Ano...13 dez 2019
Humberto Werneck
Se nos outros meses do ano a gente não precisa de pretexto para brindar a alguma coisa, ou mesmo a coisa alguma, que dirá em dezembro, quadra do ano em que tudo nos incita, convoca e até obriga a um festivo encher & esvaziar de taças e de copos? Não terá sido diferente o panorama para os integrantes deste Portal da Crônica Brasileira, no qual, até onde a vista alcança, o destino não escalou um só abstêmio. Vários de nossos craques destilaram (ou fermentaram) crônicas sobre a bebida – e nenhum deles para condená-la.
Ao contrário. Rubem Braga dedicou toda uma coluna, “Cachaça”, a denunciar o que lhe pareceu “sinistro plano de subversão nacional”: um projeto do deputado paulista Paulo Abreu, no início dos anos 1950,...