30 jun 2020
Humberto Werneck
Vinicius de Moraes, sentenciou Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, não era um, era muitos – se assim não fosse, explicou, seria o Vinicio de Moral. Nem por isso deixou de ser alguém muito singular. Que o digam, para começar, suas nove esposas, fartura conjugal amealhada ao longo de 67 anos. Para não falar, é claro, de ainda mais fartos “amores contingentes”, como disse Simone de Beauvoir das ligações fugazes ou colaterais. E sobretudo da quantidade de amigos que Vinicius de Moraes deixou quando se foi, faz agora 40 anos, em 9 de julho de 1980.
Vários escreveram sobre o grande poeta – que foi, também, um ótimo cronista, cuja produção no gênero por certo renderia mais que suas deliciosas coletâneas publicadas em...15 jun 2020
Humberto Werneck
Certas crônicas, de tão irretocáveis, podem dar a impressão de que simplesmente fluíram para o papel ou tela, como se o autor, sem qualquer sofrimento, tivesse tido apenas o trabalho de transcrever o que lhe dava a ler um teleprompter da literatura. Desnecessário lembrar que só por milagre poderia ser assim. Não há escritor que não saiba que escrever costuma ser horrível, como disse a americana Dorothy Parker, craque do ofício, e que bom mesmo é “ter escrito”.
Paulo Mendes Campos sabia disso. “Assim como em um edifício não fica sinal do sofrimento dos que o levantaram, assim não vemos além das bibliotecas a raiva dos que as escreveram, os desânimos, os desesperos, o nojo de escrever”, observou ele numa crônica inédita... 1 jun 2020
Humberto Werneck
Temperamento, feitio, inclinação natural para a visada realista que marca sua prosa – o fato é que Rachel de Queiroz dizia não sentir saudade do que quer que fosse. Nada, nenhuma, reforçava ela. Talvez nem mesmo da glória precoce que experimentou aos 19 anos, com a publicação de seu primeiro livro, o romance O Quinze, ou do dia de 1977 em que se tornou a primeira mulher a ser eleita para a Academia Brasileira de Letras. “Não tenho saudade de nada”, conta Rachel na crônica intitulada, exatamente, “Saudade”. “Nem da infância querida”, acrescenta, “nem mesmo de quem morreu”. Para surpresa de muitos, “nem sequer do primeiro dia em que nos vimos” – ela e o médico Oyama de Macedo, seu segundo marido e maior...15 mai 2020
Humberto Werneck
“O psicanalista é uma comadre bem paga”, cravou certa vez Otto Lara Resende, quem sabe para bulir com aquele que foi o seu maior amigo, o psicanalista (e bom poeta) Hélio Pellegrino. E não é impossível que Hélio estivesse na roda de conversa de que Otto fala em “Solução onírica”, na qual o assunto são os sonhos. E haja assunto! “Hoje todo mundo sabe o seu lance de psicologia”, escreve o cronista. “Freud e Jung dão pé para qualquer palpiteiro”. Em dado momento, alguém sugere que cada qual conte um sonho. O de Otto foi sobre um camarada de suas relações, que dera de lhe pedir, com implacável insistência, que encaminhasse um pedido dele ao presidente da Câmara dos Deputados – o Rio era ainda a capital federal,...30 abr 2020
Humberto Werneck
Otto Lara Resende gostava de dizer – e até deixou gravado, em 1981, num texto autobiográfico para o disco Os quatro mineiros – que nasceu num 1º de maio “não por ser Dia do Trabalho, mas por ser feriado”. Só gente mal informada poderia concluir daí que se tratava de alguém avesso ao batente – e para esses haveria um desmentido cravado em 1º de maio de 1991, data em que, chegando a nada juvenis 69 anos de idade, Otto iniciou na Folha de S.Paulo uma colaboração quase diária, só interrompida às vésperas da morte que o levou em 28 de dezembro de 1992. Ele quis que a crônica da estreia se chamasse “Bom dia para nascer” – texto cheio de diabruras bem suas, no qual, lá pelas tantas, se lê sobre outro...15 abr 2020
Humberto Werneck
Brasília, cuja inauguração completa 60 anos neste 21 de abril, foi assunto de cronistas muito antes de começar a sair do papel – mais que isto, muito antes de se saber em que ponto do Planalto Central, exatamente, ela seria construída. Para não descer fundo demais no tempo, fiquemos em 1948, ano em que chegou ao Congresso Nacional o relatório de um grupo de estudos encarregado de opinar sobre o melhor ponto daquela vastidão desértica para se erguer a nova Capital do Brasil – questão que os deputados e senadores só iriam decidir em 1953, quando, ao cabo de arrastada ruminação, a escolha recaiu na região conhecida como Sítio Castanho.
Mais quatro anos se passariam antes que as primeiras máquinas levantassem poeira num ermo...31 mar 2020
Humberto Werneck
Neste momento em que estamos – ou deveríamos estar – enclausurados em casa, muitos de nós sem quem nos faça companhia, há quem sinta falta, também, de palavras que em língua portuguesa deem conta das nuances embutidas na condição de quem está sozinho. Não nos basta, de fato, o substantivo “solidão”, sobrecarregado na empreitada de expressar estados sutilmente diversos. Problema que não tem o idioma inglês, servido por loneliness, aplicável quando a falta de alguém ao lado seja um peso no corpo e na alma, e também por “solitude”, para aqueles casos em que estar sozinho, longe de ser um peso, pode ser desejável. Até existe em português o termo “solitude”, mas como sinônimo menos utilizado de solidão....16 mar 2020
Humberto Werneck
Nascida numa região do Brasil em que tantos vivem de olho nas alturas, na esperança de salvadoras gotas d’água, Rachel de Queiroz um dia se pegou a reclamar justamente daquilo que os céus despejavam então sobre o Rio de Janeiro. Não era para menos: naquele verão de 1947, conta ela em “Chuva”, a impressão que se tinha é de que nunca mais teria fim o aguaceiro que encharcava o antigo Distrito Federal.
A Ilha do Governador, onde Rachel morava, lhe parecia prestes a se dissolver no mar, como torrão de açúcar. “Chuva miúda, chuva graúda, chuva inimiga, fria e molesta, que traz doença”, queixa-se ela numa crônica cujo título só poderia ser... “Chuva”. Não lhe bastasse o dilúvio incessante, numa daquelas noites veio... 2 mar 2020
Humberto Werneck
No momento em que o calendário traz de volta – 8 de março – o Dia Internacional da Mulher, fique aqui a sugestão de peneirar neste Portal um pouco do muito que sobre ela escreveram nossos cronistas. Para descobrir, entre outros achados, que poucos o fizeram com a assiduidade de Rubem Braga, o maior de todos. E descobrir também que, curiosamente, em seus enredos o Sabiá da Crônica quase nunca nos parece estar vivendo um amor correspondido.
No caso extremo de “Sizenando, a vida é triste”, por exemplo, ei-lo deitado, em manhã chuvosa, a imaginar sua inalcançável Joana, “meio tonta de uísque”, aconchegada àquele “palhaço”. A frustração do Braga não chega a tanto ao se ocupar de misteriosa dama, “A primeira mulher...14 fev 2020
Humberto Werneck
Para Antônio Maria, houve um Carnaval em que a ressaca veio antes da farra – se é que para ele teve farra naquele fevereiro de 1941, mês no qual, faltando “uns oito dias” para a folia começar, uma confusão doméstica levou o jovem (20 anos recém-completados) pernambucano a amargar uma noite de cana no Rio de Janeiro. A encrenca só não foi maior, conta ele em “A senha do sotaque”, porque... – bem, não antecipemos o inesperado desfecho da história. É possível que o Maria, por detrás das grades, tenha reencontrado um amargo porém essencial ingrediente das celebrações de rua que viveu em sua terra quando menino e adolescente: “Não tenho a menor dúvida”, diz ele em “Carnaval antigo... Recife”, “de que aquilo...31 jan 2020
Humberto Werneck
Assim como qualquer um de nós, que os lemos aqui na planície, também os grandes cronistas, na volta das férias, costumam trazer lembranças de viagem. A diferença é que, além de souvenirs convencionais, entre elas pode haver recordações em forma de literatura.
Às vezes nem memórias são, mas fantasias que uns dias vividos fora da base têm o condão de atear em nós, em especial quando se trata de profissionais da imaginação.
Penso, ao acaso, em Rachel de Queiroz, viajante que, ao lado de impressões trazidas do estrangeiro – veja “Suíça” e “Ir à Europa”, por exemplo –, algumas vezes se deixou levar, na hora de escrever, por algo que não trouxera na bagagem física. “A criatura”, escreveu ela na crônica...15 jan 2020
Humberto Werneck
Numa crônica prestes a se tornar septuagenária, mas ainda fresca e sem rugas, Rubem Braga fala do dia em que um poeta, dos maiores que tivemos, lhe contou de seu encontro casual, já fazia tempo, com uma bela moça, Maria. Cruzaram-se numa calçada, ele saindo de um bar, melancólico, ela radiante, de braço dado com o noivo – e desse breve encontro lhe ficou alumbramento inapagável: cravados nos seus, uns belos olhos cor de piscina.
Numa conversa com Maria, o cronista relatou o que ouvira do poeta, mas a jovem não se lembrava do encontro. Foi a vez de Rubem mergulhar, fascinado, na piscina do olhar da amiga. Só bem mais tarde, quase trinta anos depois, ao revisitar em seus arquivos aquela crônica de 1952, intitulada “Poeta”, o...31 dez 2019
Humberto Werneck
Como tantos de nós, Rubem Braga decididamente não morria de entusiasmo pelas festas de final de ano, quando menos por aquilo que elas costumam ter de alegria compulsória. Na sua deliciosa rabugice, o Sabiá da Crônica se permitia, em tais ocasiões, externar – por escrito, inclusive – uma quota de antipatia pelo inelutável vagalhão festeiro que a todos ameaça arrastar quando dezembro vai chegando ao fim.
Em “O menino”, por exemplo, de 1952, o Braga admitiu que, para ele e demais “inquietos” e “desorganizados”, as festas de Natal e Ano Novo, longe de serem um prazer, acabam sendo “mais uma providência a tomar”. Na mesma ocasião, classificou de “louco” o fato de “receber votos de feliz Natal e grandioso Ano...13 dez 2019
Humberto Werneck
Se nos outros meses do ano a gente não precisa de pretexto para brindar a alguma coisa, ou mesmo a coisa alguma, que dirá em dezembro, quadra do ano em que tudo nos incita, convoca e até obriga a um festivo encher & esvaziar de taças e de copos? Não terá sido diferente o panorama para os integrantes deste Portal da Crônica Brasileira, no qual, até onde a vista alcança, o destino não escalou um só abstêmio. Vários de nossos craques destilaram (ou fermentaram) crônicas sobre a bebida – e nenhum deles para condená-la.
Ao contrário. Rubem Braga dedicou toda uma coluna, “Cachaça”, a denunciar o que lhe pareceu “sinistro plano de subversão nacional”: um projeto do deputado paulista Paulo Abreu, no início dos anos 1950,...29 nov 2019
Humberto Werneck
Nascido em 1905, o cronista e romancista Jurandir Ferreira chegou ao fim da vida, quase um século depois, sem jamais vestir o figurino do velho ranzinza. Ao contrário, era conhecido também por sua bonomia. Mas nem por isso deu trégua a quem lhe parecesse ameaçar o sossego e as belezas naturais de sua cidade, a graciosa Poços de Caldas, no sul de Minas Gerais.
Nos anos 1950, por exemplo, quando palavras como ecologia e ambientalismo ainda não tinham uso corrente, Jurandir Ferreira se insurgiu, em “Cabritos na horta”, contra o que qualificou como “furibundo projeto” – a construção de uma estrada rumo ao cume da Serra de São Domingos, que domina a paisagem de Poços. “Penso na inocência colossal e indefesa da montanha,...14 nov 2019
Humberto Werneck
Território natural da graça e da leveza, nem por isso a crônica está fechada a temas áridos, ásperos, quando não espinhentos, como a política. Não é frequente, mas acontece – e, quando se trata de cronista dos bons, o fruto pode ser até apetitoso.
Do nosso time, quem mais escreveu sobre política foi Otto Lara Resende, não tivesse sido ele o que mais se aplicou ao jornalismo. Repórter, fez com o general Lott, em novembro de 1955, uma entrevista que se tornaria famosa, horas depois de o entrevistado haver dado um “contragolpe preventivo” para garantir a posse do presidente eleito, Juscelino Kubitschek. Duas crônicas – “A restrição mental” e “O direito no sufoco” – deixam claro que Otto, naquele episódio, foi...31 out 2019
Humberto Werneck
Talvez não haja cronista brasileiro, de grande ou modesto quilate, que não tenha um dia escrito sobre a morte – tema, há quem ache, incompatível com a leveza do gênero. E nem todos que escreveram o fizeram por imposição do calendário, apenas porque fosse, como agora, tempo de Finados. Crônicas tocantes como “Vida” e “Enterro de anjo”, por exemplo, de Rachel de Queiroz, não dependeram de ser 2 de novembro para descerem ao papel e, em qualquer outra data, ao coração do leitor.
Alguns de nossos craques, como Paulo Mendes Campos, escreveram com frequência sobre o tema, e nem sempre com a circunspecção de que ele em geral se reveste. Se “Primeiro exercício para a morte”, “Encenação da morte” e “Tens em mim tua...14 out 2019
Humberto Werneck
Numa das notas que compõem a pequena crônica “O rapaz entrou no bar”, de 1951, Paulo Mendes Campos conta a história de duas vizinhas que, tendo saído no tapa, acabaram na delegacia. Ao saber que uma delas era professora, o delegado, lembrando-se de alguma que tivera, viu chegada a hora de livrar-se de mágoas escolares encravadas na alma havia mais de 30 anos – e não teve dúvida: mandou a criatura escrever 500 vezes, e com “caligrafia muita boa”, a frase “Não devo brigar com a minha vizinha!”.
Não é descabido imaginar que também o cronista, ao relatar aquele ato de vingança, tenha lavado um pouco a própria alma, não tivesse ele acumulado mágoas nos anos em que foi aluno do Colégio Dom Bosco, de Cachoeira do Campo,...30 set 2019
Humberto Werneck
A nostalgia não é mais o que ela era, escreveu o americano Peter De Vries no romance The tents of wickedness, de 1959, pondo em circulação uma pérola que a atriz francesa Simone Signoret, 20 anos depois, vai incrustar como título em seu livro de memórias.
Sobrecarregado de saudosismo, o achado resiste, com jeito de coisa sem dono, capaz de resumir o sentimento que se apossa de tantos de nós quando a memória regurgita lembranças da infância. E nem é preciso que se esteja, como agora, em clima de Dia da Criança, festejado a 12 de outubro.
Uns mais, outros menos, todos os nove autores de nosso Portal destilaram recordações de meninice em suas crônicas.
O mais antigo deles, Jurandir Ferreira, nos leva, em “A viagem”,...16 set 2019
Humberto Werneck
Já apelidado o Sabiá da Crônica (um achado de Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta), não seria excessivo, e muito menos descabido, chamar Rubem Braga também de O Fiscal da Primavera. Credenciais por certo não lhe faltam, espalhadas numa obra tão rica quanto vasta, iniciada aos 19 anos no Diário da Tarde, de Belo Horizonte, em 1932, e só encerrada com a morte, em dezembro de 1990.
Pense, por exemplo, na crônica “Manhã”, publicada em maio de 1952, e que, quase sete décadas depois, ainda não está em livro, como bem mereceria.
Não estranhe que um dos assuntos do cronista seja ali a primavera, quando maio, neste canto do mundo, é outono – ou deveria ser, mas sabemos como andam bagunçadas as fronteiras entre as... 2 set 2019
Humberto Werneck
Ninguém vai pedir a você que esqueça os outros craques deste Portal, claro que não – mas vamos, desta vez, estender um tapetinho vermelho exclusivo, só para Fernando Sabino, um dos maiores nomes da chamada fase de ouro da crônica brasileira, a partir de agora incorporado ao nosso time.
Com ele, mestre sobretudo na arte da prosa bem-humorada, chega um punhado de histórias deliciosas.
A começar por “O homem nu”, provavelmente a crônica mais conhecida de Sabino, não apenas lida e relida há mais de meio século, sem uma ruga sequer, como também levada ao cinema, com Paulo José no papel-título. E, já que temos um homem despido, cuidemos de providenciar para ele uma parceira, embora em situação oposta, “A mulher vestida”....