Vinicius de Moraes. Acervo VM.
Vinicius de Moraes, sentenciou Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, não era um, era muitos – se assim não fosse, explicou, seria o Vinicio de Moral. Nem por isso deixou de ser alguém muito singular. Que o digam, para começar, suas nove esposas, fartura conjugal amealhada ao longo de 67 anos. Para não falar, é claro, de ainda mais fartos “amores contingentes”, como disse Simone de Beauvoir das ligações fugazes ou colaterais. E sobretudo da quantidade de amigos que Vinicius de Moraes deixou quando se foi, faz agora 40 anos, em 9 de julho de 1980.
Vários escreveram sobre o grande poeta – que foi, também, um ótimo cronista, cuja produção no gênero por certo renderia mais que suas deliciosas coletâneas publicadas em vida, Para viver um grande amor e Para uma menina com um flor.
Houve quem falasse dele com carinho banhado em malícia – caso de Antônio Maria, que em “Evangelho segundo Antônio” tomou Vinicius como exemplo único de macho que, já distante do seio materno, “foi sempre amamentado e amado pelas jovens mães dos outros”.
Fascinado pelas palavras, inclusive as de baixa circulação, Otto Lara Resende, em “Escanção e luas”, voltou à “Balada de Pedro Nava”, de Vinicius, e desencravou ali um “escanção” – alternativa, em português, para o francês sommelier, aquele sabe-tudo dos vinhos, nos restaurantes. Não espanta, aliás, que tenha recorrido a essa raridade verbal alguém como Vinicius, que no poema “Sombra e luz” chegou a inventar palavras indecifráveis, destinadas apenas a soar nos ouvidos de quem as lê mesmo em silêncio: “Munevada glimou vestassudente”.
De raspão, o poeta vai aparecer em outros escritos de Otto, como “Tudo é e não é verdade”, “O outro lado do Rio (e da baía da Guanabara)” e “Inteligência e consumo: onde estão os mestres” – e, como protagonista, em “Mineiridade: existe? ou é papo furado?”, texto em que relembra uma polêmica literário-existencial involuntariamente desencadeada por Vinicius. Em 1944, o poeta julgou necessário dar um amoroso puxão de orelhas nos escribas das Gerais, a seu ver excessivamente encolhidos diante da vida e da arte. De nada adiantou a tentativa de amenizar sua “Carta contra os escritores mineiros”, publicada em O Jornal, com um subtítulo entre parênteses: (“Por muito amar”). Otto, em “Mineiridade...”, reconstitui o que foi o bafafá. Depois de ler o seu relato, não há como não voar à “Carta...” de Vinicius, disponível no Correio IMS.
De todos os cronistas que o conheceram, o que mais frequentemente escreveu sobre o poeta foi talvez Paulo Mendes Campos – autor, entre muitos textos, da crônica em fragmentos “Plim e plão: Vinicius de Moraes”, alentada e saborosa homenagem ao amigo a quem viu pela primeira vez em 1943, em Belo Horizonte, numa noitada inesquecível em que o ouviu cantar “Stormy weather” sob “um luar torrencial”. Pouco depois de mudar-se para o Rio, em 1945, Paulo propôs e Vinicius aceitou compor com ele um “Soneto a quatro mãos”, cujo manuscrito o jovem confrade jamais descartaria, podendo ser visto aqui com as mil mexidas & remexidas dos dois torturados estilistas. Em outra ocasião, repórter além de cronista, ele botou o poeta para enumerar, em “Gostei e não gostei”, aquilo que o encantara e decepcionara durante uns meses passados na Europa.
Para sorte nossa, Paulo Mendes Campos escreveu também “Vinicius não tem fim”, evocação que no livro “O mais estranho dos países” ganharia título novo: “Casa do Leblon”, sobre a residência do poeta, de sua primeira mulher, Tati, e Suzana e Pedro, os filhos do casal, na primeira metade dos anos 1940. Então recém-chegado de Minas, Paulo se maravilhou ali com o entra-e-sai de gente interessante das letras & das artes – entre ela, em agosto de 1945, Pablo Neruda a declamar seu ainda inédito “Alturas de Machu Picchu”.
Muito mais nos deu o cronista mineiro. Sem que seus nomes sejam revelados, Vinicius e Tati vão aparecer também em “Conhecemos de oitiva...”, feixe com três historinhas sobre empregadas domésticas. O poeta protagoniza a de número 2. Vivendo então em Los Angeles, ele é arrancado do sono pela habitual zoeira do rádio e da enceradeira – e, dessa vez, enfurecido, passa aos atos: só de cueca, Vinicius salta da cama, sai do quarto e “dá o bote” na faxineira, que, não fosse a intervenção de Tati, poderia ter morrido estrangulada.
(Ah, sim: a primeira historinha de “Conhecemos de oitiva...” é sobre uma empregada que, bicho do mato do interior de Minas, em Nova York pôs as manguinhas de fora e soltou inesperadas frangas ante seus perplexos patrões, igualmente não nomeados na crônica: Helena e Fernando Sabino. Decidida a macaquear tudo o que fizesse a dona da casa, a criatura, ao saber que havia um bebê a caminho, cuidou de atracar-se a um marinheiro.)
Se Paulo Mendes Campos propôs a Vinicius parceria num soneto, Rubem Braga dispensou lira alheia e escreveu sozinho um “Bilhete para Los Angeles” – cidade onde, na segunda metade dos anos 1940, o poeta servia como diplomata. Não se saiu mal na empreitada poética – já não fosse a sua prosa empapada de poesia da boa. Depois do “Bilhete...”, recomenda-se a leitura, também, de um soneto, provavelmente o ponto mais alto de sua rarefeita obra poética. Não é impossível que o cronista capixaba, ao empunhar métrica & rima para se dirigir a Vinicius, quisesse dar um troco ao vate que, quatro anos antes, dedicara um longo poema-carta, “Mensagem a Rubem Braga”, a quem naquele momento cobria como repórter a guerra na Itália.
Mais adiante, quando saiu a primeira antologia poética do amigo, o Sabiá da Crônica publicaria “Vinicius”, deliciosa montagem de versos que pinçou no livro. Em 1980, três meses depois da morte dele, o Braga lhe mandou um “Recado de Primavera”, em cujas linhas finais comunica ao querido destinatário: “Eu ainda vou ficar um pouco por aqui – a vigiar, em seu nome, as ondas, os tico-ticos e as moças em flor."