30 dez 2021
Humberto Werneck
Você abre seu jornal, sua revista, no impresso ou no digital – e dá de cara com a surpresa ruim: cadê o meu, cadê a minha cronista do coração? Aconteceu o que se dá com qualquer escriba. Um dia, some, seja por fastio, literário ou não, seja por haver batido asas para além da imprensa, batido asas deste mundo. Nunca mais, no gênero ao menos, uma palavra daquele ou daquela de quem você, sem se dar conta, acabou docemente dependente. O consolo é saber que a criatura não se foi sem nos deixar uma “última crônica”.
Ou até mais de uma, no caso talvez sem similar de Lima Barreto. Quando ele morreu, em 3 de novembro de 1922, sua “última crônica” parecia ser Novos ministérios, estampada três semanas antes na Careta...30 nov 2021
Humberto Werneck
Às voltas com uma crônica que precisa escrever, mas que reluta em descer ao papel, Rubem Braga caminha à noite sob a chuva, e, antes de buscar abrigo no café da esquina, repara no casal que namora na calçada, indiferente ao aguaceiro. A crônica, que dali a pouco finalmente vai brotar, será devedora dos amantes empapados de ternura e chuva, mas de outro par também – as duas bagaceiras que o cronista sorveu para melhor saborear aquele amor à prova d’água.
Já em Uma conversa de bar, o Braga é mais que simples observador. Lá está com a moça, os dois envoltos numa penumbra que é também da alma, pois sobre eles paira uma certeza não enunciada, porém dura, mais que isso, inapelável. Tão penosa que, à falta de palavras, ele...29 out 2021
Humberto Werneck
Lá está ela, metida num vestido preto de mulher antiga, junto ao guichê de uma casa de câmbio, de onde saem maços e maços de dinheiro. Você passou pelo título, A velha, e acredita estar diante de mais uma personagem que o maior de nossos cronistas vai retratar com inimitável combinação de delicadeza e força.
Será? Dois moços, jornalistas “sem um tostão no bolso, desanimados e calados”, repararam nela – e vão roubar a cena. O jovem Braga (sim, é uma história acontecida) e seu amigo Zico a veem sair para a rua com sua bolsa estufada, e, sem uma palavra, se põem a segui-la por um cenário deserto, tão deserto que bastará um gesto rápido para aplacar por um bom tempo os seus tormentos financeiros.
Enquanto você vai...15 out 2021
Humberto Werneck
O chato faz muito calor. Foi Jayme Ovalle quem disse, e a observação tem validade universal, se aplica até aos esquimós, a tiritar em seus iglus, pois da chatice não há povo que escape. E haja leque e ar-condicionado para encarar essa deplorável porção da espécie humana, infelizmente numerosa, merecedora de um livro inteiro, o best seller Tratado Geral dos Chatos, de Guilherme Figueiredo (1915-1997). Difícil saber quem comprou mais, se os chatos ou não-chatos. O problema é distinguir um do outro. Foi o que deu a entender Paulo Mendes Campos em Tipos exemplares, sobre categorias variadas de gente aborrecida, azucrinante, aperreante, fastidiosa, importuna, maçadora, tediosa ou sacal, para citar apenas alguns dos 32 adjetivos...30 set 2021
Humberto Werneck
Nada como um bom cronista, e aqui temos um punhado deles, para apanhar no chão do dia a dia alguma aparente miudeza, e a partir dela compor um palmo de prosa capaz de atravessar a circunstância e, sem data de validade, seguir encantando leitores presentes e futuros. Impressões, sutilezas, pequenos fatos, ou mesmo fato algum. E, é claro, personagens, pois também não há como um bom cronista para garimpar tipos interessantes no cotidiano.
É o que não falta, benza Deus. Gente notória ou obscura, figurões, figurinhas, – aqui temos de tudo. Quem julgava saber tudo sobre, digamos, Severo Gomes (1924-1992), empresário e político paulista falecido naquele acidente de helicóptero em que morreu também Ulysses Guimarães, e com os dois,...15 set 2021
Humberto Werneck
Se tudo pode dar crônica, dependendo, é claro, das artes de quem a escreva, por que o rol de temas não incluiria a palavra, logo ela, instrumento e matéria-prima dos escribas? E não venham dizer que tomá-la como tema seria recurso de autor em crise de falta de assunto. Palavra é assunto, e como!
Sempre foi, aliás. Penso aqui, para começo de conversa, em Machado de Assis, um dos pioneiros do gênero entre nós. Em 1877, o Bruxo do Cosme Velho deliciou seus leitores – e segue deliciando os que vieram depois – com três crônicas em que zombou da xenofobia vocabular do professor Antônio de Castro Lopes (1827-1901). Hoje esquecido, esse xiita do idioma se arrepiava inteiro à simples ideia do contágio do português por palavras...31 ago 2021
Humberto Werneck
Com todas as coisas boas que nos trouxe – entre elas, a garantia de originais impecáveis, mesmo após muita mexida –, a escrita no computador deixou em alguns de nós, o pessoal (me inclua nessa) chegado numa arqueologia literária –, uma coisa ruim: como saber, agora, por onde veio o autor até o texto definitivo, se já não se usa entregar páginas recobertas de rabiscos e garranchos, matéria-prima da crítica genética, tão fascinante quanto reveladora? Já não dá para saber como foi que se deu o trabalho de “despiorar” um texto, para usar aqui uma invenção verbal do perfeccionista Otto Lara Resende. Despiorar romances, contos, poemas, ensaios – e também, por que não?, crônicas, pois, embora escritas no sufoco dos deadlines...16 ago 2021
Humberto Werneck
Jamais se saberá se Lima Barreto comprou alguma coisa naquela manhã de 1921 em que saiu de casa, no Méier, rumo a uma feira livre, novidade que um burocrata do Ministério da Agricultura, Dulfe Pinheiro Machado, futuro ministro de Getúlio Vargas, implantara no Rio de Janeiro. Cronicamente desmonetizado que era, o mais provável é que nosso escriba não tenha comprado nada – muito menos umas bruxas de pano, recheadas de serragem, que lhe pareceu destoarem num território supostamente exclusivo de verduras e legumes.
Até então encantado com a “lindeza de moças e senhoras”, relata Lima Barreto em Feiras livres, ficou muito irritado – e, bem mais que ele, o vendedor das tais bruxas, deflagrando um bafafá que requereu a presença...30 jul 2021
Humberto Werneck
Amor realizado é com certeza o que há de bom, mas – desculpe se desafino o coro dos felizes – nem sempre dá literatura boa. Ou você acha que Shakespeare teria perdido o tempo dele contando uma história de Romeu e Julieta com happy end? Teria, quem sabe, se limitado a registrar o fogaréu inicial de uma paixão – como fez, mais perto de nós no tempo e no espaço, o cronista e poeta Paulo Mendes Campos, ao falar do casal que em plena tarde, numa cidadezinha, faz crescente a sua lua de mel, enquanto o mundo lá fora gira prosaico em outra direção.
Levemos adiante a provocação. José Carlos Oliveira não teria escrito Entre aspas se tivesse juntado os panos com aquela que julgava ser a mulher de sua vida, “extremamente...15 jul 2021
Humberto Werneck
Neste momento em que boas novidades parecem ter virado raridades, é uma alegria poder anunciar que nosso Portal acaba de ser enriquecido com um novo lote de crônicas de Fernando Sabino, e que muito em breve outras tantas estarão aqui incorporadas.
Alegria, pois, e das graúdas, à altura de um dos mais indiscutíveis mestres da crônica brasileira. Chega a dar inveja de quem vai pela primeira vez mergulhar na sua copiosa e bem peneirada produção no gênero, com um prazer comparável ao de quem, a partir da década de 1950, “descobriu” Sabino em jornais do Rio, com frequência às vezes diária – ou, mais caprichado ainda, na Manchete, revista que se dava ao luxo, hoje inimaginável, de trazer também, toda semana, Rubem Braga,...30 jun 2021
Humberto Werneck
Paulo Barreto, o João do Rio, a partir de agora incorporado ao time do Portal da Crônica Brasileira, é merecedor, também aqui, não de um, mas de dois tapetes vermelhos, um para cada enorme contribuição que nos deixou, na dupla condição de cronista e de repórter. Numa atividade como na outra, assinando-se bem pouco com seu nome de pia, e sim com um punhado de pseudônimos, dos quais o mais conhecido é João do Rio, o escritor carioca, falecido aos 41 anos há pouco mais de um século – 23 de junho de 1921 –, foi não somente um craque como um notável inovador.
Não há exagero em considerá-lo, na história da imprensa brasileira, o primeiro repórter genuíno, diferenciado de seus pares num tempo em que a maioria dos jornalistas,...15 jun 2021
Humberto Werneck
Os tempos, claro, são outros, nem sempre melhores, a imprensa, também – e o fato é que, nostalgia à parte, nunca mais tivemos, nos domínios da crônica, uma fase de ouro como aquela que cintilou da metade dos anos 40 a meados dos 60, com brilho mais intenso na década de 50.
O leitor dispunha então de uma boa dúzia e meia de cronistas, vários deles entre os melhores que o gênero já nos proporcionou. Só na Manchete, revista semanal criada em 1952, havia quatro, e veja quem: Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino, além de Henrique Pongetti, que, sem ombrear com eles, nem por isso fazia feio. Também toda semana, Rachel de Queiroz acostumou muita gente a começar pela última página a leitura de O Cruzeiro... 1 jun 2021
Humberto Werneck
É bem possível que Paulo Mendes Campos sofresse de – vá desculpando a brincadeira com as palavras – insônia crônica, pois foram muitas as ocasiões em que tomou o tema como assunto em seus escritos. Numa delas, o sono decepado pôs para rodar um filme, não na televisão, como fazem tantos em madrugadas de vigília incontornável, e sim na inesgotável cinemateca da memória. Pois sua insônia, contou ele, vinha a ser “um vasto mural no tempo, composto de quadros díspares e desordenados”, cuja unidade era “um fiozinho mínimo e invisível dentro da Noite”: o próprio Paulo. Um filme que, daquela vez ao menos, principiava com uma fotografia em que, menino, ele posava ao lado da mãe, junto ao muro de um cemitério, Freud explicaria?...17 mai 2021
Humberto Werneck
Do nosso time de cronistas, houve três que não se contentaram em apenas visitar Paris. Trataram de passar ali um tempo mais largo e mais pausado, sem o implacável cronômetro de um turista. Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e José Carlos Oliveira, por ordem de chegada ao mundo (e a Paris), viveram temporadas esplêndidas às margens do Sena, e de lá abasteceram jornais do Rio de Janeiro. De volta ao Brasil, a experiência de cada um seguiu rendendo prosa, carregada de memórias.
Para Rubem Braga, foram especialmente vivas as lembranças de um prédio onde morou, no número 44 da rue Hamelin, não longe do Arco do Triunfo. Instalado com mulher e filho em acomodações geladas, no 4º andar, só mais tarde veio a saber que 25 anos antes dele...30 abr 2021
Humberto Werneck
Homem sofrido, Lima Barreto teria ainda mais motivos para se lamentar, pois nasceu numa sexta-feira, 13, só lhe faltando ser agosto. Mas não achava que a circunstância lhe trouxera azar. Se trouxe, a má sorte terá sido contrabalançada pela fortuna de haver nascido num mês, diz ele em “Maio”, no qual “as ambições desabrocham de novo” e se produzem “revoadas de sonhos”. Poderia acrescentar que se beneficiou também do fato de ter vindo ao mundo num ano, 1881, assinalado, como raríssimos outros, por algarismos que formam capicua, aquele número que se pode ler também de trás para diante. Descendente de africanos, o melhor presente do menino Afonso Henriques, no dia dos seus sete anos, um domingo, foi um convite do pai...19 abr 2021
Humberto Werneck
Leitor insaciável de pesquisas de opinião, não fosse ele um jornalista atento, Otto Lara Resende se deparou um dia com uma enquete segundo a qual apenas 40% dos franceses acreditavam no Inferno, e, menos numerosos ainda – 38% –, no Diabo. Bem diferente do panorama aqui por nossas bandas, avaliou o escritor mineiro, seguro de estar vivendo num país “Católico, mas brasileiro”. Sua suposição de certa forma se confirmaria um mês depois, ao ler noutra pesquisa, essa nacional, que 93% de seus compatriotas tinham fé em Deus. E mais: 91% deles acreditavam nos anjos – em especial o da guarda, que alguns afirmavam já terem visto, estando assim capacitados a descrevê-lo como uma espécie de atleta, “alto, louro, forte”, apto... 5 abr 2021
Humberto Werneck
Assim como ninguém é ruim numa coisa só, um mal quase nunca vem sozinho. A constatação vale especialmente para os dias que correm, mas está longe de ser novidade. Basta ver um registro que fez Lima Barreto no ano de 1920, quando campeava ainda por aqui “um impiedosa epidemia”, fruto de vírus que ele não nomeia, inequivocamente o da gripe espanhola. Além daquela “gripezinha” (em nome da qual, aliás, tentou-se empurrar nos pulmões do povo uma inócua Grippina, que em comum com a cloroquina teria muito mais que a rima), grassava outro flagelo, o da pirataria intelectual: um “médico modesto”, conta o cronista em “O pai da ideia”, publicou artigo receitando encher o Rio de hospitais – mas ninguém passou recibo da sábia...17 mar 2021
Humberto Werneck
Nascido há exatos 100 anos, completados neste 17 de março, Antônio Maria ficou sendo, entre os cronistas do nosso Portal, o único que se foi sem publicar livro. Não que o “Menino Grande” (um de seus apelidos, título de canção sua) fosse indiferente à ideia, manifestada aqui e ali, sem muito elã. É bem possível que tivesse chegado às livrarias, não fosse o infarto que o levou aos 43 anos. Livros dele, só bem adiante, organizados e editados por iniciativa de amigos, e, mais adiante ainda, do cronista e jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, que viria a ser também o seu biógrafo, em Um homem chamado Maria.
Embora várias coletâneas tenham sido publicadas a partir de 1968, quatro anos após a sua morte, a maior...