Café parisiense, Paris-França, s.d. Foto de Otto Stupakoff/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Do nosso time de cronistas, houve três que não se contentaram em apenas visitar Paris. Trataram de passar ali um tempo mais largo e mais pausado, sem o implacável cronômetro de um turista. Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e José Carlos Oliveira, por ordem de chegada ao mundo (e a Paris), viveram temporadas esplêndidas às margens do Sena, e de lá abasteceram jornais do Rio de Janeiro. De volta ao Brasil, a experiência de cada um seguiu rendendo prosa, carregada de memórias.
Para Rubem Braga, foram especialmente vivas as lembranças de um prédio onde morou, no número 44 da rue Hamelin, não longe do Arco do Triunfo. Instalado com mulher e filho em acomodações geladas, no 4º andar, só mais tarde veio a saber que 25 anos antes dele ali viveu e morreu um escritor, dos mais graúdos da literatura universal no século 20. O nome do enorme romancista? Encaminho você, sem mais tardança, a em “Dois escritores no quarto andar”. Diga-se apenas que o Braga se arrependeu de ter enjeitado, mesmo depois de flambada, a banheira onde o referido gênio das letras mergulhava seu castigado corpo, preferindo providenciar mangueira e chuveirinho. Em compensação, agarrou-se à fantasia de ter dormido na cama em que o ilustre colega batera as botas.
Tratado pela primeira vez em “44, rue Hamelin” – da qual a crônica citada acima aproveita largos trechos e acrescenta outros –, o endereço do Braga em Paris inspirou ainda “As velhinhas da rue Hamelin”, um dos melhores frutos do talento de quem foi observador finíssimo da vida. Duas das tais velhinhas são “magrinhas como duas formigas”, e, caminhando em calçadas opostas, parecem vigiar-se mutuamente, para verificar se a outra segue viva. Na rua Hamelin o cronista detectou ainda dois velhinhos que andam juntos sem jamais trocar palavra, um dos quais lhe dá a impressão de haver nascido já vestindo a sobrecasaca.
Em Paris, Rubem Braga foi cronista e também jornalista, e desta última produção, bem pouco convencional no gênero, diga-se, ficaram textos que alguns anos atrás Augusto Massi selecionou e reuniu pela primeira vez em Retratos parisienses, delícia de livro ainda pouco conhecido. Lá estão relatos de encontros que o Braga teve com Pablo Picasso, Jean-Paul Sartre, Marc Chagall e Jean Cocteau, por exemplo. São todos ótima leitura – mas fiquemos com “Visitando Marie Laurencin”, retrato impiedoso, e no entanto compassivo, de uma artista menor então em voga. Que outro repórter começaria dizendo que a entrevistada foi para ele “uma decepção”?
Não muito tempo depois do amigo Rubem Braga, Paulo Mendes Campos também viveu em Paris, e de lá trouxe vivências e impressões tão copiosas que, se fossem coisa física, teriam corrido o risco de empacar na aduana brasileira. Não espanta que anos mais tarde, bufando e se liquefazendo na fornalha de um verão carioca, em dia de muita chatice e trabalho, lhe tenha batido – “De repente” – “uma saudade magnífica de Paris na primavera”. Saudade, detalhou ele nesta crônica que é também poema em prosa – “de mim a vadiar pelas ruas e bosques”, “indo e vindo pela margem esquerda do Sena”, a admirar “a cor e o imponderável de Paris”.
A julgar por seus escritos, nada parece ter escapado às antenas do poeta e cronista mineiro. Nem mesmo os cemitérios, tão diferentes, constatou, dos que temos no Brasil. O cronista viu ali um tanto de coisas que eram para ele novidade, e disso falará na delicada “Cemitérios de Paris”, uma dessas ótimas crônicas que lamentavelmente ainda não chegaram a livro. Em qual cemitério brasileiro se poderia topar com tamanha fartura de velhinhos, com namorados “que se beijam e se amam entre túmulos”, com estudantes atracados a seus livros, com crianças a brincar, “tão naturais ali perto da morte”? Ou aquela senhora que, apoiada na bengala, carrega “flores feias e velhas”, com o ar não de visitante, mas de quem, no final do dia, estivesse voltando para a sepultura. Imagem semelhante àquela que o Braga nos deu em “As velhinhas da rue Hamelin”, com a diferença de que a segunda personagem não está retornando à tumba, e sim temerosa de nela cair antes da hora.
Uma coisa se pode afirmar: para o visitante, mesmo sem traço de necrofilia, os cemitérios parisienses têm muitos atrativos – além, é claro, da reconfortante certeza de (por ora) estar ali apenas de passagem. Rubem Braga gostou de passear num deles, o de Montparnasse, onde o que mais o atraiu foi o concorrido jazigo do casal Pigeon. Vale uma espiada no Google para conhecer Thérèse e Charles Pigeon, castamente acomodados, como dois pombinhos, em sua cama de pedra e bronze. (Se você perdeu exatamente aquela aula de francês, saiba que pigeon é pombo.).
Numa de suas revisitas a Paris, Paulo teve à disposição um atrativo adicional: a companhia de Vinicius de Moraes, amigo que em meados da década de 1950 lá servia como diplomata. Tão boêmios quanto poetas, lançaram-se na noite parisiense, e no fim da madrugada, famintos, foram em busca da mitológica sopa de cebola do mercado que existia em Les Halles.
Não se vai antecipar aqui – trate de ler “Em Paris” – o que sucedeu quando, no pós-sopa, sobretudo no pós-vinho, já nascendo o dia, a dupla voltou ao local onde Vinicius deixara o carro. Diga-se apenas que, no capítulo seguinte, naquela madrugada ainda, os dois cruzaram a ponte Mirabeau, celebrada em versos de Guillaume Apollinaire (1880-1918) que Vinicius se pôs então a recitar. Foi o que bastou para acender em Paulo a lembrança de outra história, ligada ao autor de “Le pont Mirabeau”, que se passara com ele em sua temporada parisiense. Versos famosos que, por fim, estão também na citada “De repente” – e os mesmos, veja você, que haverão de condimentar também “O Sena corre sob a ponte”, em que outro antigo morador na cidade, José Carlos Oliveira, nos leva a passear com ele no final do inverno parisiense de 1979. Passeio que será retomado, dois anos mais tarde, numa crônica, “Bonjour, alegria”, em que Carlinhos, agora em pleno outono, “desbordando de amor por Paris”, nos propõe deleitoso contraponto a Bom dia, tristeza, o romance que em 1954 fez da desconhecida Françoise Sagan (1935-2004), aos 19 anos, uma celebridade literária supranacional.
Paris era para ele algo tão especial que um dia, ao listar seus desejos numa série de crônicas, pôs na primeira linha o sonho de conhecer a capital francesa, “que namoro de longe há dez anos”. Ou seja, desde os seus 18, altura da vida em que trocou Vitória pelo Rio de Janeiro. Só em janeiro de 1964, ano e meio depois de publicar “Desejos (1)”, pôde Carlinhos pôr os pés no aeroporto de Orly (não existia ainda o Charles de Gaulle, inaugurado em 1974), conforme contará numa crônica cujo título será uma palavra que dispensa qualquer outra: “Paris”. O jovem (29 anos) só não sabia que sua estreia incluiria, no mesmo dia, uma cena de sangue.
Em “Cadê meu bistrô?”, ei-lo a flanar – afinal, “Paris não é uma cidade para o turista apressado”. Na calçada do multiestrelado Plaza Athenée, a surpresa de topar com “uma gentil senhora muito poderosa no Brasil” (cujo nome o cronista fez a maldade de nos sonegar), e ela o convida para um drinque no bar do hotel. Tudo muito bom, mas o uísque não ajudou a resolver o doce problema que o atormenta: tendo desistido de La Coupole, qual bistrô deve ele agora adotar?
Agonia maior, contará Carlinhos em “Solidão, solidão”, só a de saber que naquele momento havia na cidade 590 mil mulheres tão solitárias quanto ele. Sentiu-se como o Velho Braga no dia em que, recém-chegado a Paris, ligou para uma conhecida – e ouviu da concierge (zeladora) que a moça havia partido. Nem tão ligado era assim à criatura, “A que partiu”, mas, sozinho no hotel, sentiu inesperado desamparo – até se dar conta de que apenas havia caído numa cilada da língua francesa, na qual “partir” em geral dispensa a conotação dramática que o verbo frequentemente tem em português. Uma dessas sutilezas que, como poucos, Rubem Braga sabia captar e destilar em arte.