Fonte: Flanando em Paris, Civilização Brasileira, 2005, pp. 169-171. Publicada, originalmente, no Caderno B, do Jornal do Brasil, de 21/03/1979.
A minha fada madrinha, Maria, minha bastante procuradora na vida e depois da morte ― pois ela responderá por mim quando eu já não estiver aqui ―; à Maria mandei uma gravura de Magritte e este aviso desalentado: "Pois é, estou encalhado aqui em Paris..."
Naquele momento, nem nos cinco dias que já se passaram, me ocorreu o que agora bruscamente brilha em minha consciência: trata-se de uma declaração perfeitamente esnobe. Então, alguém pode se queixar de estar em Paris, com dinheiro no bolso, e tendo em sua pasta de documentos a passagem que lhe permitirá voltar para casa quando bem entender?
Pois é, foi assim mesmo. Aquela reclamação deve fazer parte constitutiva do meu ser atual. Estou encalhado em Paris. Estou sentado ao meio-dia no Jardin du Luxembourg, entre árvores esgalhadas, estátuas de músculos patinados, e sob um céu azul rajado de nuvens branquíssimas. Sou um esnobe. Não adianta negar a evidência.
Entretanto, tenho um álibi. Justifico o meu procedimento lembrando que não estou aqui flanando, mas trabalhando (ó malandro, tu és mesmo incorrigível: eis outro desabafo de dandy!), e trago um plano de atividades a cumprir. Deveria já ter ido a Amsterdã, onde visitaria o Museu de Van Gogh, e de onde me embrenharia por dentro da Holanda, à procura de uma cidade administrada ao estilo provo, ou hippie ― ou seja uma comunidade concebida durante a revolução das flores que perturbou o mundo nos anos 60, make love not war, e que continua funcionando hoje, obedecendo a critérios existenciais autênticos, e não ao jogo árduo e quase sempre sujo dos interesses pessoais, a corrida em busca do sucesso que torna um inferno de luxo cada minuto na vida do self-made man.
Deveria ir ainda a Lourdes, Chartres e Fátima, pois desta vez, devolvendo a Lúcifer o orgulho com que me brindou na manjedoura (ai! blasfêmia!), posso declarar sem pudor que ando à procura da minha fé perdida. A minha fé católica, uma graça de Nossa Senhora que acalentou minha infância, me ajudou a sobreviver nas piores condições, e para cuja destruição tive que inventar uma máquina, feita peça por peça de conceitos filosóficos existencialistas. Após sofrer um trauma de grandeza trágica, isto no pórtico da juventude, triturei assim a minha fé e avancei revoltado, niilista, para dentro do mundo adulto. Cá estou agora, sentado no Jardin du Luxembourg; meu coração alegre, mas a minha alma se alimentando de inquietude e nostalgia. Vivendo essa experiência na intensidade com que experimento e interrogo cada ondulação ou crispação do meu ser, posso dizer literalmente, dizê-lo autenticamente pela primeira vez desde que tal expressão popular foi pronunciada: a minha alma come o pão que o diabo amassou.
Devo ir ainda a uma cidade europeia onde Dominique, minha namorada, me espera, enquanto constrói uma solidão na qual deverá residir nos próximos cinco anos. Quero estar junto de Dominique. Tenho a ambição (e a esperança) de ficar muito tempo junto dela. Por que não? O amor que move o sol e as outras estrelas é bem capaz de operar esta nova magia.
Entretanto, em Paris, o inverno estrebucha como o dragão vencido por São Jorge. Em cadeiras individuais, em torno de um vasto gramado (a grama queimada) dezenas de parisienses dormitam, leem, respiram fundo o ar puro. Estamos quentando sol, mas no sentido inverso. Nossos corpos rechauffés nos ambientes fechados e debaixo das pesadas roupas de couro e de lã ― e dos quais se desprendem faíscas elétricas que fazem ― triiiisc! quando de noite tiramos três camadas de suéteres ― nossos corpos, dizia eu, aquecem aqui os raios gélidos do astro-rei... Curiosa permuta de calores, inimaginável para algum brasileiro que não tenha provado ainda uma temporada de inverno rigoroso.
Em troca de não poder sair daqui, por causa dos exames médicos, morosos, que ainda devo fazer, me aposso de tudo o que há em Paris à espera daquele que está disposto a andar e ver. Andar muito, andar horas e horas, e ver tudo, examinar acuradamente... Entre tantas cidades lindíssimas que há na Europa, Paris é sem dúvida a mais bela, por causa dessa mistura bem dosada do antiquíssimo com o antigo, o fin de siècle, a belle époque... São quase dois mil anos de civilização aqui acumulados, coexistindo em harmonia perfeita, a qual não exclui os contrastes abismais.
E além disso, sous le pont Mirabeau coule la Seine... Atravesso a Petit Pont, a mais antiga ponte construída sobre o decantado rio. Do outro lado, o adro imenso da Notre-Dame onde crianças brincam. Meu coração alegre pede uma canção, a canção me estimula a caminhar... Pois debaixo da Pequena Ponte o Sena também corre, remoinha, apressado, pesado, velho e fatigado, e ao mesmo tempo jovem e saltitando nas pedras oblíquas de ambas as margens ― o adorável rio Sena, cor de burro quando foge!