Fonte: Retratos parisienses, José Olympio, 2013., pp. 61-64. Publicada, originalmente, no Correio da Manhã, de 21/05/1950.
Devo dizer que Marie Laurencin foi uma decepção para mim? Talvez não tenha esse direito. Quando Louis Wiznitzer me levou ao seu ateliê eu lhe dizia, no táxi, não ter entusiasmo pela pintura dessa mulher. Mas há um lugar para Marie Laurencin na pintura de hoje. Foi ela quem inventou esse lugar, e ela o ocupa virtualmente sozinha.
Não há ninguém mais fácil para se escrever contra; mas, ao mesmo tempo, isso não teria sentido. Algum dia, ao menos por um instante, ela já pôde encantar a cada um de nós com um gesto indolente de uma de suas jeunes filles perdida em um mundo rosa e azul esmaecido, essas cores suavemente lésbicas. Ela não faz outra coisa, e nunca fez, a não ser raros retratos e umas naturezas-mortas de um decorativo bonitinho. Mas para que exigir um demônio de inquietação dentro de cada artista? Há tantos pintores! Há bem um lugar para essa fabricante de licores adocicados e finos.
Suponho, entretanto, que ela deva ser menos vulgar do que se mostrou nesse encontro cordial. Não precisava ter me dito, e depois repetido três vezes a pessoas que foram chegando, que aquele pequeno óleo que estava acabando no momento era para dar de graça a uma campanha internacional contra o câncer. E quando falamos dos tempos antigos de antes da guerra e surgiram os nomes de Picasso e Guillaume Apollinaire, que súbita irritação possuiu essa mulher!
Disse que eles eram durs, isso quer dizer mais ou menos valentões, malandros, e sabiam se arranjar muito bem. Sim, Picasso está rico, e seria uma vergonha para o mundo se não estivesse. Mas, e Apollinaire? Pergunto-lhe se Apollinaire não morreu pobre.
– Mais do que isso – me responde –, morreu de pobreza, sofreu uma trepanação, trabalhava como revisor, não se alimentava bem.
Mas não tem uma só palavra de ternura para esse pobre poeta que a amou e que morreu há mais de trinta anos. Mostra-me um retrato que fez de um grupo em que ela mesma está, ao lado dos dois, e diz que hoje adulteram muito a história. Ela sabe como foi.
Insisto em falar de Picasso, ela nos pergunta se somos comunistas, e diz que há comunistas por toda parte, e que eles sabem como fazer para influir em tudo, e dão uma importância desmedida aos que são do seu número: “Até Cocteau anda de namoro com eles, até esse menino Jean Marais – isso é uma coisa louca!"
Vejo uns livros religiosos a um canto, pergunto se é católica. Responde que sim, sem muita convicção, e ajunta: “E ariana!” Não é um excesso de finura de sua parte afirmar isso desse jeito: Louis Wiznitzer é judeu, e eu poderia muito bem ser.
Reparo em sua cabeça, sob os cabelos brancos. Deve ter tido certo encanto em moça, com esses olhos vivos, a pele rosada; hoje se parece com a minha concierge. Apesar de tudo é simpática, e quando o marchand Barreiros aparece e lhe pergunta se é verdade que ela vai se casar, tem um sorriso quase de jeune fille antes de dizer e explicar que não, mas é verdade que tempos atrás um grande cirurgião a pediu em casamento. Uma de suas amigas presente conta a história. Ela mesma diz, com certo ar de vaidade, que muita gente tem pedido que interceda junto ao cirurgião para operar alguém, e ele sempre atende, é um homem verdadeiramente gentil.
Conta que foi casada com um alemão, um homem encantador; quando veio a Grande Guerra os dois foram mandados para a Espanha, e ali viveram cinco anos. Depois passou dois anos na Alemanha. Seu marido, insiste, era um homem realmente belo e sedutor; mas bebia demais. Divorciaram-se. Mais tarde ele morreu. Não tiveram filhos.
Pergunto se trabalha com modelo. Sim, no momento tem uma pequena linda, que vai estrear na Comédie Française. Mostra alguns quadros em que ela aparece: é sempre a mesma lânguida moça, às vezes com um seio nu, os olhos tolos, a boca suavemente sensual. Pergunto se escolhe modelos que se pareçam com suas moças ou se é o contrário. Sorri: escolhe as criaturas que lhe parecem interessantes, moças ou meninas, às vezes adolescentes.
Fala-se de pintura, de pintores antigos e modernos. Não mostra entusiasmo por nenhum moderno, diz que sempre esteve à margem de todos os movimentos. Dos mortos prefere Renoir, acha que teve influência dele. Concordo, delicadamente: ela também é uma pintora de mulheres belas. Mas como estamos longe, olhando essas donzelas sofisticadas, de sonho, que se espreguiçam pelas paredes do ateliê, daquela carnação triunfante, gorda e rica do bom Renoir! Mas a influência principal que sofreu — e isso me dá um leve susto — foi Goya. Fala dos retratos das Infantes e Majas, depois diz que sabe espanhol e só então percebo que estava tentando falar espanhol quando, ao nos receber, disse que “il fait friô”.
Vejo que trabalha ao mesmo tempo vários quadros, como fazem muitos pintores. Pergunto-lhe quantos quadros fez, mais ou menos, no ano passado. Não responde, a pergunta parece irritá-la ligeiramente, conta que em mil novecentos e não sei quantos, quando só tinha feito uns vinte quadros, já era acusada de ter fabricado dois mil. Na realidade trabalha pouco, diz. E, quando estava casada e não precisava trabalhar, só raramente pintava um quadro. Chega um poeta feio, tímido, afeminado, uma criatura de Cocteau com os cabelos oxigenados. Não sei por que, fala-se do tempo da ocupação. Ela o passou todo em Paris, foi um tempo ruim, tinha medo das explosões. Quanto aos alemães, eles não gostavam da sua pintura; gostavam, isso sim, da pintura de Picasso, eles só amam o que é forte.
A conversa se descaroça um pouco, depois todos saímos no dia chuvoso e frio que veio cuspir sua tristeza no meio de uma linda primavera de Paris.
Andamos os dois juntos, na calçada estreita, à procura de um táxi. Eu me pergunto o que vou escrever sobre essa mulher e, de repente, me dá uma ternura por essa velha trabalhadora de cabelos brancos que anda ao meu lado, uma ternura que dá para entender e cobrir tudo o que nela é mediocridade e despeito. Afinal, ela é um expoente deste meio século, com suas mocinhas de sonho, flores líricas de uma época desigual e bruta; nosso tempo ficaria mais feio se ela não existisse. Despeço-me com respeito de Marie Laurencin.