O Aeroporto de Orly estava cercado de neve. Antes de vê-la, o francês ao meu lado opinou que seria geada. Depois, olhando pela janelinha do avião: “Não é geada, não”, disse ele, “é neve mesmo.” Era neve provocada artificialmente para melhorar as condições de pouso. Mais alguns minutos, e um ônibus rolava a caminho de Paris.
Os passageiros se dispersaram na estação da Air France, e me encontrei sozinho na cidade cujo plano não compreendia. O amigo que devia estar à minha espera fora informado de que eu só chegaria 14 horas depois, pelo trem de Nice. Tanto melhor: muitas outras cidades já me haviam desafiado. Depositei a bagagem na própria estação e, só com uma velha maleta, comecei a andar na paisagem grisalha, entre essas árvores esqueléticas que modulam o inverno parisiense. O frio quebrava em meu rosto as suas lâminas de vidro muito finas, porém me incomodava menos do que imaginara. Fui andando por uma longa avenida e logo avistei um café. Entrei e, num francês titubeante, pedi café e cigarros Gauloises. Em Nice, trocara alguns dólares por moedas francesas, e agora lançava algumas moedas no balcão, para que o garçom apanhasse o correspondente à minha despesa. Ele assim fez, e eu já ia partindo quando ouvi às minhas costas estas palavras arrancadas de uma garganta varonil.
― Service pas compris!
Voltei, joguei novamente as moedas no balcão e sugeri que apanhasse quantas quisesse. Para um forasteiro, aquelas moedas constituíam uma mistura inextricável de francos velhos e novos. O garçom fez um ar constrangido: não lhe parecia decente determinar ele próprio o montante da gorjeta. Coloquei as moedas na palma da mão e, durante algum tempo, tentei decifrá-las. Impossível. Finalmente, um homem que tomava cerveja pediu licença, colheu 30 cêntimos na minha mão e os lançou num pequeno prato em cujo fundo se fazia propaganda de uma cerveja alemã.
― Merci, Monsieur! Merci bien! ― gritou o garçom, como se me coubesse algum mérito naquela demonstração de generosidade. Apanhei a maleta e saí. Olhei o nome do café: era o Café de la Concorde, que conhecia bastante de nome e que vivera dias gloriosos logo após a guerra. Senti uma alegria totalmente absurda diante dessa verificação e, pouco depois, com as orelhas ardendo de frio, vi que minhas suspeitas se confirmavam plenamente. Naquela tarde gris, 25 minutos depois de pisar em solo parisiense e sem ter pedido informações a quem quer que fosse, eu já estava em pleno Boulevard Saint-Germain! Era, por assim dizer, o único lugar a que pretendia chegar, e assim continuei andando, sentindo que um líquido descia de minhas narinas, depositando esse líquido num lenço ― era sangue - parando algum tempo com a cabeça inclinada para trás a fim de estancar a hemorragia, e voltando a cortar corajosamente as lâminas do inverno e murmurando, numa embriaguez totalmente absurda mas perfeitamente compreensível quando, não tendo ainda 30 anos, tem-se contudo a convicção de algum dia vir a ser alguma coisa na vida:
“Paris! Paris! Árvores esqueléticas, jeunes filles com gorros de astracã e longas botas negras, hemorragia nasal e a chuva incessante de ar cinzento! Vejam o que a França faz com o nariz de quem a desafia!”