Fonte: Flanando em Paris, Civilização Brasileira, 2005, pp. 103-104.  Publicada, originalmente, no Caderno B, do Jornal do Brasil, de 5/09/1975.

Tarde ensolarada, temperatura agradável. Ando pelos bulevares, descanso nos bancos de praça, espio as vitrinas das lojas. Esta é a maneira tradicional, dir-se-ia mediúnica, de receber o espírito de Paris. Não é uma cidade para o turista apressado. Os cafés estão cheios; a multidão nas ruas é colorida, e há em cada rosto uma expressão satisfeita, muito embora se diga que a crise se aproxima (o desemprego em primeiro lugar).

Vou ao La Coupole, só pelo velho hábito, peço cerveja de Munique, um sanduíche de presunto, abro Le Monde, o mundo me cansa, fecho o jornal e me ponho a observar os passantes através da vidraça. Estou ― feliz? tranquilo? ― não sei. Estou. Meia hora atrás, procurando a nova sede da Varig, encontro em frente ao Plaza-Athenée uma gentil senhora muito poderosa no Brasil e bastante estimada em numerosos outros lugares. Dou um doce a quem adivinhar de quem se trata. Ela me apresenta ao mordomo do Plaza e me oferece um uísque. Estou em situação embaraçosa. Minhas roupas de Ipanema, estilo marginal de luxo, agravadas pelo meu boné de veludo azul e pelas minhas botinas de couro de búfalo (sem falar na sacola de couro de vaca onde carrego toda a minha parafernália de vagabundo) ― minhas roupas estão amassadas e, tantos dias jogadas na mala, não cheiram muito bem. Mas o meu status de boêmio, combinado com o de escritor, me dá direito à extravagância comedida. Entro, sento, peço o uísque pela marca e me ponho a conversar com a ilustre senhora  uma das pessoas mais simpáticas, e sem dúvida a mais modesta que conheço. Quem sabe ela seja a minha patroa e esteja querendo que eu me sinta em Paris como em casa? Quem sabe uma certa organização chamada JB nos deixe à vontade, como em nossa própria casa, em qualquer parte do mundo? Pois é. Se Marx estivesse vivo, o Brasil seria a sua caixinha de surpresas. Despeço-me dela: vou à vida.

Quer dizer, não vou a parte nenhuma, estou sentado em Coupole e constatando que o Coupole não é mais o mesmo bar. Alguma coisa mudou aqui, ou fui eu que mudei, não há nenhuma razão objetiva a justificar tal suposição ― mas quem conhece Paris sabe que é assim. O Coupole não é mais o meu bar, e está acabado.

Preciso comprar umas roupas adequadas à elegância europeia (ou, no meu caso, à deselegância, que varia conforme as estações do ano e também conforme os povos). Visitar os museus, ir ao teatro, ao cinema. Passear ao longo do Sena, de "Bateau-Mouche".

Pouco adiante  do Coupole dou com um pub ― assim mesmo chamado, mas não de todo inglês por causa da varanda, ou terraço. Já que é um pub, peço um uísque. Leio um pouco de Samuel Beckett. Peço um segundo uísque. São sete horas da noite (ainda há claridade no céu) e a partir de agora o estabelecimento começa a trabalhar com refeições. Nunca jantei às sete horas, portanto não é esse o meu bar, que no entanto deve estar em alguma parte, à minha espera, como acontece aqui  e só aqui.

Escrevo em cartões-postais, termino de ler o Monde, pego um táxi e vou para casa. Fazer o quê? Dormir. Paris é cidade para você entrar nela na maciota. Desde que ainda não encontrei o meu bistrô, só me resta recolher-me aos meus aposentos. Assim faço. Bonne nuit!

jose-carlos-oliveira