Avenida Atlântica, Copacabana, Rio de Janeiro-RJ, 1955 circa. Foto de José Medeiros/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Difícil imaginar um escritor, mesmo um daqueles capazes de se interessar por algo além do próprio umbigo, que não guarde o que publica na imprensa. O pernambucano Antônio Maria Araújo de Moraes, cujo centenário de nascimento se comemorou neste ano de 2021, foi quanto a isso uma exceção radical. Quando um infarto o apagou, aos 43, ele não só não tinha livro publicado como não deixou recortes das milhares de crônicas que espalhou numa fartura de revistas e jornais. O homem que se rotulava “cardisplicente” foi também um bibliodisplicente.
Sabe disso melhor do que ninguém o jovem cronista e pesquisador Guilherme Tauil, que, uma vez apresentado à literatura fina do Maria, até recentemente disponível em cinco coletâneas magras e há muito esgotadas, ainda assim suficientes para atear nele uma paixão, decidiu cavar em busca de mais ouro mariano. Três anos de cuidadosa mineração resultaram, em 2020, numa dissertação de mestrado, defendida na Universidade de São Paulo – e, agora em novembro, num suculento catatau, Vento vadio, quase 500 páginas nas quais, finamente peneiradas, Tauil, com rigor de mestre, acomodou 185 crônicas, das quais 132 até agora inéditas em livro.
Encantado, este editor do Portal da Crônica Brasileira, tendo devorado a obra, recomenda a você que corra atrás de um exemplar, comprometendo-se, caso torça o nariz, a lhe ressarcir a grana despendida, mas avisando desde já que no mesmo ato romperá relações literárias com o equivocado comprador... Saiba você que estará botando fora, ainda, num caprichado texto introdutório, informações sobre a vida e a obra de Antônio Maria, além de considerações capazes de explicar a inapetência editorial de um cronista dos maiores.
Mas vamos sem tardança a uma primeira lambiscada nos tesouros de Vento vadio.
Comecemos pela crônica que o Maria dedicou a um colega e amigo, “das pessoas que melhor já escreveram neste nosso idioma”: ninguém menos que Rubem Braga, de quem semanas antes tinha lido mais uma obrinha-prima, Opala, que entra aqui num contrabando do qual ninguém irá reclamar, sobre uma bela Joaquina que, “com a mão no queixo, os olhos no céu, era quem mais fazia. Fazia olhos azuis”. “Fazia olhos azuis”, embasbaca-se o Maria. No apartamento onde pousa o Sabiá da Crônica, uma “água furtada” no topo de um edifício em Ipanema, há uma varanda, nela uma rede, e na rede quem? Antônio Maria, “falando bem da vida alheia com o dono da casa”.
Um amigo seu de infância também é merecedor de crônica, talvez como compensação pelo fato de Maria não o ter reconhecido de saída. Quando por fim o localiza no fundo do baú da memória, o cronista o abraça, se desculpa e vai-se embora. “Se fosse possível convencê-lo’, sai ruminando, “teria ficado para dizer-lhe, com todas as palavras nos lugares certos, que a falha não é, jamais, de quem esquece o amigo de infância”, “e, sim, de quem dele ainda se lembra.”
Retratista fino, Antônio Maria não esconde o interesse que lhe causa certo Everaldino, “homem vivedor” com quem divide mesa num restaurante. “Seu ar e sua voz macia baianizavam por completo o salão, onde paulistas friorentos comiam”, nos conta ele. O homem lhe faz cair o queixo com o relato aventuresco de quem foi escafandrista a bordo do barco de um grego de nome Papaulos, de cuja mulher, sem esforço nem premeditação, um dia se tornou amante. Descoberta a história, será salvo da morte exatamente por quem planejara dar cabo dele. Na sua tortuosa ganhação da vida, Everaldino foi também baterista numa orquestra em Cuba, mas gostou mesmo foi de ser modelo para um caricaturista em Roma. Entre uma aventura e outra, aceitou, num circo, em troca de 300 mil-réis, engalfinhar-se com um canguru, numa disputa que acabou sem vencedor.
Volta e meia com o pé na estrada, Antônio Maria de repente está em Paris, onde, às 6 da matina, vê apenas “pombos que beliscam o asfalto” e “mulheres encapotadas que saem dos subterrâneos”, os primeiros a exibir “grande tranquilidade” e elas, “certo ar de saciedade nos olhos”. É assim, filosofa o cronista, “que Paris acorda: pombos serenos e mulheres nem sempre”. Num café, em seguida, ele repara que os olhos e o nariz de uma moça são tão parecidos com os de outra que também seu coração deve ser frio.
O amor, tema de inumeráveis crônicas de Antônio Maria, lhe inspirou Desgaste, sobre um casal em que “um cabia tão bem no abraço do outro”, enquanto entre suas bocas não havia mais que um “curto espaço”, “ocupado por palavras pequenas, de amor, de ternura violenta”, até que... Não antecipemos o desfecho da história.
Eis tudo transcorre sob a chuva que cai sobre a casa do cronista, fazendo com que em seu coração brotem de novo “todas as coisas antigas que foram boas” para ele. “Deve ser a infância, toda ela, que se perdeu sem que eu pudesse fazer nada”, medita ele. Volta a lembrança da chuva que desabava no seu quintal de menino e destruía um por um os seus carrinhos. “Hoje está chovendo e eu não tenho um só brinquedo”, constata. “Perdi a razão e todas as mortes me cercam, muito atentas.” O clima, dentro e fora dele, é semelhante ao de Beleza, delicada crônica que além de ler você não deixará de ouvir na interpretação de Guilherme Tauil, ele mesmo, o organizador de Vento vadio. Neste caso, porém, há na serra flores que lhe trazem “uma alegria completa, uma impressão de salvamento, em que os cansaços aparecem como penas já cumpridas”. Em seu coração “há um amor indefinido, que por si, pelo bem que faz, poderá ficar sem alvo certo, sem reciprocidade”, bastando-lhe “a manhã de vento frio, o perfume das flores e o verde do capim viçoso”. Em Estrada afora, uma gota de humor bem próprio de Maria atenua a melancolia. Quando, por exemplo, ele se lembra de uma solitária vez em que sentiu “um vago desapego da existência”: “Não cheguei a querer a morte, mas pus-me à sua disposição. Não me quis. Agradeci-lhe o pouco caso e desci do avião”. Mais adiante, confessa que não se importaria de ser por um mês Vicente Celestino, o lacrimogênio compositor de O ébrio e Coração materno. Mas vê um problema: quem, durante aqueles 30 dias, seria a “caseira” dele, Antônio Maria?
Ainda mais bem-humorada é Barata entende, na qual o cronista vê surgir uma quase camaradagem entre ele e um exemplar desse tipo de inseto, um entre inumeráveis que assolavam sua casa, porém um pouco diferente dos demais: uma barata “mais clara, talvez, mais alazã”. Diferente também porque passa bom tempo a observá-lo enquanto ele escreve, pousada onde? em cima da Antologia poética do amigo Vinicius de Moraes... De tanto vê-la, Maria acostumou-se à companhia, de tal modo que sentiu desassossego numa noite em que a barata demorou a dar as caras, ou melhor, as antenas, e a ocupar seu posto sobre o livro. Mas a história não vai terminar aí...
Outro inseto pousa em O croquete, no caso, uma mosca e em sentido literal. E ali vai permanecer por largo tempo, no botequim, sob o olhar judicioso de um freguês de camiseta, maltratado, com os fundilhos muito sujos e cabelos idem, que observa a vitrine de salgados “como uma mulher olharia para uma vitrine de joias”. Entre os muitos croquetes que ali jazem, “todos antigos, ainda da inauguração do botequim”, o homem finalmente escolherá “aquele azul, que está com uma mosca em cima”, e, impassível, justificará a escolha ao cronista, que, roído pela curiosidade, o interpelará na rua.
Mas já se espicha por demais um papo anunciado como lambiscada apenas. Nisto é que dá uma conversa quando o assunto é Antônio Maria. O que se recomenda agora é ir voando à fonte, seja neste Portal, onde há mais de uma centena de crônicas dele, seja nas páginas do bem-vindo Vento vadio.