Fonte: Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria. Pesquisa, organização e introdução de Guilherme Tauil,Todavia, 2021, pp.219-220. Publicada, originalmente, em O Globo, de 04/01/1957.
Vou pela estrada, juro, sem a menor vontade de morrer. À esquerda, o mar me segue ou eu o sigo à sua direita ou, ainda, o que é mais provável, um não tem nada a ver com o outro. O mar é o mar, uma coisa que ninguém conseguiu explicar até hoje. Eu sou eu, uma pessoa, um homem igual a todos os que são frágeis, sabido de cor e salteado por meus parentes e amigos. Ou se eles não me sabem, pensam que sim e isto lhes dá uma certa autoridade para lamentar-me. Ou envaidecerem-se de mim. Eu me sei pouco. Por exemplo, agora, poderia asseverar alguns gostos e desgostos que, amanhã, talvez sejam outros. Assim como: quero viver, mesmo quando não estou gostando da vida. Não tenho mais que a vida. Para a vida convergem o amor, o esquecimento, as alegrias e os castigos. Da minha vida, nascem a intenção e o feito. Tenciono mais do que faço. Estou sempre tencionando. Só tenho a vida e sinto-me capaz de prezá-la no último instante de uma sufocação. Não vejo merecimento em usar-se o suicídio num bolso do paletó. O suicida vê o revólver, o rio, o mar e o despenhadeiro já com olhos de viagem. Lembro-me de que só uma vez senti um vago desapego pela existência. Estava cansado e ainda não havia feito nem a metade de tudo. Não cheguei a querer a morte, mas pus-me à sua disposição. Não me quis. Agradeci-lhe o pouco caso e desci do avião.
Vou pela estrada e preferia ser uma outra pessoa. Não me importaria de passar um mês sendo Vicente Celestino. Mas quem ia me ser, durante a ausência? A quem confiaria as minhas prezadas desditas? Só a alguém que fosse capaz de amar uma ou outra dessas infelicidades que se repetem em cada pausa do homem comum. Assim que eu me lembre, se fosse mesmo passar uns dias em Vicente Celestino, só uma pessoa e, por acaso, uma mulher, poderia ficar de caseira durante meu retiro. É uma pessoa como eu, que nada sabe de si mesma. Substituir-me-ia com tamanha perfeição que, ao voltar, todas as desarrumações de que vivo estariam intactas. É preciso saber ser-se interino e manter a desordem encontrada. O homem desarrumado é antes de tudo um forte.
E lá me vou, estrada afora, neste primeiro dia do ano, pensando coisas que não melhoram nem ajudam. É claro que estou triste. Como há três meses não me sentia tanto. Mas não vou morrer por isso e amanhã já estarei muito melhor. Viver é isso mesmo. Felicidade que é felicidade mesmo tem sempre uma agonia no meio. Vamos viver mais um ano (todo ou em parte) e não serão esses desgostos à beira-mar que nos levarão a quebrar o vidro e puxar a corrente. O lema será este: querer bem às mulheres e confiar nelas. Mas sempre de olho nos homens, porque, em cinco, um não gosta de música, outro é usurário, o terceiro é vaidoso e os dois restantes não valem as unhas que roem. O nosso Amigo (com “a” grande) é um sexto, que acordou tarde e não sabe de nada. Podemos amá-lo, sem maiores medos.