Fonte: Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria. Pesquisa, organização e introdução de Guilherme Tauil,Todavia, 2021, pp.108-110. Publicada, originalmente, na Manchete, de 07/02/1953.
Braga — Rubem — é de Cachoeiro de Itapemirim e, disso, faz um patriotismo germânico, agredindo quem fala mal de sua terra. Fuma Liberty Ovais e, por estranha coincidência, padece de uma bronquite que lhe dá certo encanto. Na guerra, um correspondente americano o identificava a quilômetros pela fumaça do cigarro. Levava um lenço ao rosto e dizia: “Braga is here”. Em seguida, vomitava e escrevia para a família, nos Estados Unidos, repetindo, na carta, dezenas de vezes: “Braga is here”. Mora em Ipanema, numa cumeeira de edifício, em frente ao farol da Ilha Rasa, onde escreve, lê, pensa, bebe, fuma, dá almoços e ama — embora ao amor, aos grandes planos e ressacas do amor, dê a maior parte do seu tempo. Em sua sala, passam todos os ventos e Braga (o íntimo dos ventos) os chama pelos nomes: sudoeste, noroeste, terral (brisa terral) etc. É sonâmbulo e, uma vez, tendo dormido em São Paulo — num hotel da avenida Ipiranga — despertou em Santos, na cama fofa do Balneário. Não tem hora certa para dormir, preferindo repousar em módicas prestações de duas e três horas, onde estiver e quando o sono o pegar. Acordado ou dormindo, sofre 23 horas por dia de dor de cotovelo, dedicando a hora restante a pensamentos bancários, o que vale dizer: pensar em letras. Considera o verão um bem de Deus e o toma como merecimento seu; quando lhe oferecem qualquer trabalho, entre novembro e abril, sua resposta é uma só: “vamos deixar pra maio”. Odeia o presidente da República e seu grande prazer é escrever contra a palavra Vargas, pelo menos, uma vez por mês. É querido e acatadíssimo em todas as rodas, principalmente naquelas onde estão os políticos que ele considera adversários. Homens e mulheres sabem, de cor, vários trechos de suas crônicas e gostam de repeti-los, em êxtase, o que encabula um pouco o autor, obrigando-o a levar o copo à boca para cobrir o rosto. Dança mal e é razoavelmente desafinado. Mas gosta de música e sabe distinguir o que é bom do que não serve. Em matéria de mulher, não fala em “boas”, nem em “pedaços” — fala em “beleza”, prendendo-se, terrivelmente, aos detalhes. Já lhe ouvi longos discursos sobre “joelhos redondos” e “coxas longas”.
Gosta do mar e dos peixes, sabe o nome de várias estrelas e tem umas conversas com as Três Marias. Viaja sob qualquer pretexto. Basta que uma garça voe no rumo da Europa… e lá vai o Braga. Na Itália ou na França, sente-se como se estivesse no Brasil. Fala francês, inglês e português, com péssima pronúncia. É das pessoas que melhor já escreveram neste nosso idioma. Vive há um mês da crônica de Joaquina, que dizia: “Joaquina, com a mão no queixo, os olhos no céu, era quem mais fazia. Fazia olhos azuis”. Homem de atitudes seguras, à base de uma lealdade pouco vista de Joana d’Arc até nossos dias. Não perdoa certos inimigos, por mais gracinhas que eles façam para ser bonzinhos. Há dias, um inimigo rico, através de terceiros, ofereceu-lhe um bom ganhador de dinheiro. Braga não se deixou fascinar por um segundo sequer, não ficou com o semblante dos seduzidos, respondendo, em cima da oferta: “Engraçadinho, quer que eu seja seu empregado. Por que ele não vem ser copeiro do meu apartamento?”. Fisicamente, não é grande coisa, mas tem sempre muito sol no rosto e muita saúde no lábio inferior, que, às vezes, toma ares e cores de alcatra, em prato de churrascaria. Não se dá com Wainer e Chateaubriand, que, por sua vez, são inimigos entre si. Entende e gosta de pintura, balé, marés, futebol, geografia, mulher (seus penteados, seus jeitos de andar, seus modos de pintar a boca, suas cruzadas de pernas), conhaque, passarinhos, poesia, seu poeta preferido é Bandeira e seu clube é o Flamengo. Já fez jornalismo no Rio Grande, São Paulo, Minas, Ceará, Pernambuco e, do Recife, recorda frevos e maracatus, obrigando-me a cantar, a três por dois, algumas canções dos carnavais pernambucanos. Fez 40 anos e garante que foi pela primeira vez.
Este é Rubem Braga, de quem nossos netos lerão as crônicas e — quem sabe? — talvez invejem a era (quando a vida era mais barata etc.). Sua “água furtada” tem uma varanda, a varanda tem uma rede e, na rede, tem eu, sem camisa, recebendo o sudoeste, de frente, gelando os suplícios do meu avesso e falando bem da vida alheia com o dono da casa. Indo e vindo, navio ou avião do rumo-sul passa por lá e dá adeus. Braga, escorando na fumaça de mais um Liberty Ovais, trama uma viagem à Europa. A vitrola toca “Summertime” e anoitece. Os pinheiros de alguns quintais bem-postos, que existem por ali, dão boa noite ao poeta e vão tratar de sua vida.