Freiras, Rio de Janeiro-RJ, 1950 década. Foto de José Medeiros. Arquivo/Coleção José Medeiros/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Leitor insaciável de pesquisas de opinião, não fosse ele um jornalista atento, Otto Lara Resende se deparou um dia com uma enquete segundo a qual apenas 40% dos franceses acreditavam no Inferno, e, menos numerosos ainda – 38% –, no Diabo. Bem diferente do panorama aqui por nossas bandas, avaliou o escritor mineiro, seguro de estar vivendo num país “Católico, mas brasileiro”. Sua suposição de certa forma se confirmaria um mês depois, ao ler noutra pesquisa, essa nacional, que 93% de seus compatriotas tinham fé em Deus. E mais: 91% deles acreditavam nos anjos – em especial o da guarda, que alguns afirmavam já terem visto, estando assim capacitados a descrevê-lo como uma espécie de atleta, “alto, louro, forte”, apto para voos não somente espirituais. “Presumo que em estado de repouso”, arriscou Otto em “Nossa alada segurança”, “não apareçam as asas”. Fosse como fosse, lhe parecia inegável o fato de que “o brasileiro pode ser feio, pobre e doente”, mas “tem um anjo só para ele”.
Seu amigo e confrade Rubem Braga talvez fosse um homem de fé, mas certamente não de fé religiosa. Ainda assim, tinha humildade ou esperteza suficiente para se permitir exceções nesse particular. Como no caso de uns restos de caju chupado que ele, sem premeditação de agricultor, empurrou terra adentro num vaso – caroço que, esse sim, cheio de fé botânica, veio a converter-se em broto, semeando no cronista o desejo de saborear cajus de seu próprio pomar. “Quem sabe Deus está ouvindo...”, fez votos a moça que cuidava das plantas – e o patrão, sem dizer palavra, disse amém. Nem mesmo em nome do mais suculento fruto chegaria ele ao extremo de cultuar um santo; mas num outro escrito admitiu que, se tivesse que escolher algum, escolheria dois, “São Cosme e São Damião”, os padroeiros das crianças – e a eles pediria que zelassem pelos “louros e os escurinhos deste grande e pobre abandonado meninão triste que é o Brasil”.
Exceções à parte, o Rubem Braga incréu, digamos assim, comparece em “O proibido”, sobre a decisão do Vaticano (foi há quase 70 anos) de vetar para os católicos a leitura ou mesmo a posse de livros de autores ímpios como Jean-Paul Sartre, André Gide e Alberto Moravia. Malicioso, lembrou-se de que o cupincha Fernando Sabino, embora católico praticante & comungante, tinha entre seus livros os diários de Gide – e, em nome da coerência religiosa, não hesitou em reivindicá-lo para si: “Estou esperando o Journal, Fernando”. (Feita de público, a exigência suscitou troco igualmente bem-humorado, que se recomenda ler nas páginas 107 a 109 do delicioso Livro aberto, de Sabino.)
Amigo daqueles dois, Paulo Mendes Campos não dava mostras de fidelidade ao catolicismo em que nasceu e se criou, mas ainda assim escreveu, volta e meia, sobre temas religiosos. Nos mais diversos tons, diga-se. Numa crônica que é também um conto, o protagonista vem a ser um cão que, exausto de caminhar ao sol do Rio de Janeiro “em busca de lixo e cadelas”, busca refrigério numa catedral, provavelmente a Candelária, e ali, em plena missa, é visto a farejar um mundo para ele virgem. “O cão na catedral” pode ser lido também como poema em prosa, cravejado de achados poéticos, entre eles um anagrama preciso e precioso, quando Paulo, poeta até como cronista, afeito a brincar com letras e palavras, vê na “lama” do cão também a sua “alma”.
Poesia e prosa voltam a se entrelaçar em “Maria José”, homenagem do cronista a sua mãe – especialíssimo anjo da guarda que ele, aos cinco anos, viu empunhar um revólver e sair para a noite do quintal, disposta a enfrentar um ladrão. Brava mulher em mais de um sentido, sem prejuízo da delicadeza, ela dizia que para entrar no Céu era preciso “fazer violência”. A poesia se insinua também nos 19 parágrafos de “Folclore de Deus”, em que Paulo, na busca de compreender o mistério de Deus, a certa altura põe em campo uma linguagem futebolística, algo que tão bem conhecia, para falar daquele que lhe parece ser “o guardião, a zaga, o meia apoiador, o ponta de lança”, contra quem não haverá de prevalecer o “ferrolho” do mais temível por adversários.
Tão irreverente quanto equitativo, o cronista não se interessou por Deus apenas. “As grandes e pequenas agitações do nosso mundo são patrocinadas pelos anjos bons”, escreveu ele em “Sobre o demônio”, e em seguida focou o lado oposto: “Para o príncipe das trevas, a monotonia é mais lucrativa. A rotina é o negócio do diabo, ele trabalha sobre o tédio das paisagens e das almas.” O que pretende, afinal, a mais maligna das entidades? Segundo Paulo, “o plano do capeta consiste essencialmente em reduzir a terra e os seus inquietos habitantes a uma mesma chatice”. Lá pelas tantas, uma surpresa nos aguarda, audaciosa: “Satã não é igualmente tão anticlerical quanto parece”: há “muitos casos de paróquias em que o diabo vive em harmonioso contubérnio intelectual com os respectivos vigários.”
O humor, essa marca de Paulo Mendes Campos, tem boa amostra, ainda, em “O papa já se manifestou a favor...”, crônica antiga, daqui a pouco septuagenária, do tempo em que roupa de padre era batina, obrigatoriamente. O personagem da historinha é um cardeal americano, o célebre Francis Joseph Spellman, a quem, nos anos 40, em Nova York, ocorre a ideia de convidar um pudibundo arcebispo espanhol para um banho de mar em sua companhia. Mas fiquemos por aqui, sem spoiler para o final ainda mais inesperado.
Não menos divertida é "Juízo final", em que o poeta e cronista, aos 24 anos, está numa roda de autores veteranos. Por algum motivo, ou sem motivo algum, o assunto é o derradeiro dia da espécie humana, quando, levados todos à presença do Criador, cada um vai saber se o destino é subir aos Céus ou despencar nos caldeirões do Inferno. Escritores também, por que não? Lá estão, entre outros, Mário de Andrade, já falecido, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Vinicius de Moraes, Rubem Braga – e Carlos Drummond de Andrade, que pagará todos os seus pecados ao se deparar, perante Deus, com o próprio Diabo, na pessoa de Eloi Pontes, o crítico que por anos a fio lhe pegara no pé literário. O que vai acontecer? Pode apostar em bafafá, o primeiro, e, claro, último em que os dois se envolveram.
Para Rachel de Queiroz, que bem poderia ter estado naquela roda, o paraíso, ou uma pequena prefiguração dele, parece já estar na mão, naqueles anos 1940 em que foi viver na Ilha do Governador, à época um recanto de fato paradisíaco do Rio de Janeiro. Não apenas era sossegado como oferecia ao morador encantos imprevistos. “A Ilha também tem pastoras”, comemorou Rachel. Nada a ver com oficiantes de igrejas pentecostais, e sim com ritos africanos que ali costumavam descer às ruas, ao som de “música puramente negra”, “tão autêntica que dá um choque a quem de repente a escuta”. Choque maior ainda, igualmente benfazejo, teria a cronista no dia em que pastoras bateram à sua porta e lhe puseram nas mãos uma bandeira.
Também ele nordestino, o pernambucano Antônio Maria raras vezes deixou vir à tona a religiosidade que embebera a sua infância – e, quando o fez, foi em escritos delicados como “Maio e mãe, mãe e maio”, em que revisita o engenho pernambucano no qual, menino, costumava passar as férias. Neste que é um do melhores momentos de sua veia memorialística, o Maria reconstitui os ambientes nos quais, reverentes a Deus e atentos ao calendário religioso, sobrado & mocambo se juntavam para orações e cânticos, num “quarto de santos” cujo perfume de flores e de velas acesas atravessaria tempo e espaço para vir, intacto, inebriar o leitor de nossos dias.