Em uma roda literária, falava-se no Juízo Final. Imaginou-se então, que férteis de imaginação vão os escritores, o julgamento dos literatos brasileiros naquele dia terrível. Os escritores nacionais estariam classificados, numerados, ocupando uma das bancadas diante do tribunal celeste. Marques Rebelo se aproxima do trono divino e aconselha o Senhor a condenar sumariamente todos os seus colegas: “são todos umas bestas e uns safados”. Deus chama a atenção do autor de Marafa, repreendendo-lhe pela linguagem demasiado livre. A um canto, Mário de Andrade conversa com Álvares de Azevedo e com Rui Barbosa, cercados por tímidos mineirinhos e pelo trêfego Ledo Ivo. Schmidt caminha com dificuldade entre a multidão, dizendo a este ou aquele que ele já sabia, que ele já esperava esta plenitude, esta beleza pura e iluminada, Jorge de Lima recita um de seus poemas cristãos. Murilo Mendes conversa anjos e arcanjos. José Lins do Rego conta uma anedota. Um anjo que, de passagem, ouve algumas de suas palavras lhe diz qualquer coisa ao ouvido; o romancista se cala, Graciliano Ramos resmunga, dizendo-se decepcionado com o céu. Aníbal Machado diz para Michel Simon (que deixou a bancada francesa a fim de juntar-se à brasileira) que, na verdade, ele era materialista, mas que jamais deixara de ter uma secreta devoção por Nossa Senhora. Vinicius de Moraes fez amizade com São Pedro. Está intercedendo junto ao porteiro do céu por Otávio Dias Leite, que permanece do lado de fora por ter chegado depois da hora. Astrogildo Pereira e Augusto Meier palestram com Machado de Assis, que lhes confia gaguejando ter acompanhado com interesse o movimento modernista. Rubem Braga dorme, Carlos Drummond de Andrade não quer saber de conversa. Rodrigo Melo Franco está pessimista. Pedro Nava diz que qualquer paixão o diverte. Alto-falantes pedem silêncio. Mas é inútil, o zunzum continua. Alguns estão nervosos. Outros, como Alceu Amoroso Lima, não conseguem disfarçar o próprio júbilo interior. Soam trombetas. O coro das virgens principia a cantar o “Dies Irae”, o que faz despertar Rubem Braga. Otávio de Faria conversa com Lúcio Cardoso, reclamando pela demora do julgamento. De repente, ouve-se uma troca de insultos: Elói Fontes havia dado um encontrão em Carlos Drummond. Principia-se um ligeiro tumulto. Ouvem-se gritos de “fascista”! “Trotskista”! “Reacionário”! Arcanjos corpulentos, com um jeito de Polícia Especial, dissolvem os misteriosos desordeiros. Evidentemente, este pessoal perdeu a calma. Vai começar o grande julgamento. Há um ligeiro desarranjo no microfone central. Em seguida, fazem a chamada por ordem do mérito alfabético. Muitos gênios nacionais estão acabrunhados: não figuram na lista dos escritores. Agora a compunção dos espectadores é visível. Com exceção de Marques Rebelo estão todos os outros religiosamente quietos. O que se segue eu não posso contar. Os pormenores do julgamento eu sou obrigado a esconder. Não tenho jeito para a maledicência. Muitos foram os chamados e poucos os escolhidos. Muitas verdades se fizeram ouvir perante o trono celestial. É por isso que é melhor ficar calado.

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