Não é mania de gabar: mas na verdade a Ilha tem mesmo de um tudo. Até pastoras, quem diria? E diferentes, diferentes nos trajes, nas cantigas e no espírito. Porque as daqui cantam por religião, cumprindo uma promessa que deve durar sete anos. A música é puramente negra e tão autêntica que dá um choque a quem de repente a escuta. As pastoras se vestem de branco e trazem na cabeça uma coroa de rosas de papel; não dançam, nem sorriem, nem requebram, apenas cantam a melopeia lenta, tristíssima e repetida; cantam de olhos fechados, sacudindo o chocalho no ritmo perfeito, ― nem bem cantam, propriamente: rezam. Os homens que também se vestem com blusa de seda branca e também usam diadema de rosas no boné, ajudam no coro e são a orquestra. Tocam a caixa grande, de som fundo, poderoso como um tantã de guerra, dando nostalgia de distância e de floresta. A sanfona faz o solo, dá voltas na melodia, dobra-a e desdobra-a, e mesmo quando está alegre soa triste e só falta obrigar o coração da gente a se desmanchar dentro do peito. E além da sanfona tem a viola, os surdos, os tambores, os maracás, os chocalhos, os tamborins e o pandeiro.

Contudo o mais bonito é a bandeira. Não sei direito contar o que senti, amigos, quando eles pararam à minha porta e puseram a bandeira na minha mão. Era leve, enorme, com figuras pintadas no cetim, laços, flores e filó e a haste que a sustinha envolta numa espiral de fitas coloridas. A caixa batia, o ritmo poderoso assustava e o homem da viola que puxava o coro cantava “Abençoada seja as mãos que segurou minha bandeira” e as pastoras em fila e tocando os ganzás repetiam o verso, em toada ainda mais lenta e mais alta e depois diziam ai-ai! em agudíssimo. E aí a sanfona tomava a melodia e a dissolvia em suspiros. Falar a verdade é preciso, o que fiquei foi comovida, engasgada e meio zonza ― pra bem dizer, invocada.

E ainda há os palhaços. São a parte da alegria que se deve aliar a devoção, porque o Menino Deus também gosta de quem o faça sorrir. Vestem-se à moda de qualquer palhaço, porém em vez do rosto pintado de zarcão e alvaiade usam uma máscara ― reminiscência sabe Deus de quê. Máscara que é uma cara comprida, hirsuta, feita de couro cru, toda de pelos ruivos, olhinhos abertos em viés, boca horrenda com dentes de folha, o nariz formado por uma mecha de pelos mais intensos e mais arrepiados. E os palhaços dançam, cantam, dão cabriolas, recitam trovas e improvisos.

E agora permiti que vos fale do moço Sebastião, que é um desses palhaços. Quisera eu ter um emprego de caçador de talentos, ou quisera ter prestígio junto a algum empresário de teatro musicado ― junto ao Sr. Chianca de Garcia por exemplo, para lhe recomendar o palhaço Sebastião. Nunca vi ninguém ser dançarino de nascença na proporção em que ele o é. O ritmo lhe faz parte do corpo como a respiração, da ponta do pé descalço à ponta da carapuça de bufão. Dança nas piores condições possíveis ― calcando o chão irregular de terra batida, descalço, coberto de fitas e babados, com o rosto escondido por palmo e meio de couro, quase sem fôlego e se desmanchando em suor. Pois debaixo de tudo aquilo, Sebastião, que tem menos de vinte anos, é servente de pedreiro de profissão e palhaço apenas por devoção, baila como nunca vi ninguém dançar, leve, como um boneco, certo como uma batuta, ágil como uma faísca. Não imita ― cria, não repete nada porque tudo é improviso. Tenho visto muita vocação se perder ― mas aquele menino ser servente de pedreiro, é uma dessas coisas que bradam aos céus. Acontece, porém, que ele é pobre, é de cor, não tem amigos, e, principalmente, parece que não tem ambição. Fez promessa de dançar na folia dos Santos Reis ― e por sete anos dançará em louvor do seu santo. Do Natal à festa do Mártir São Sebastião é bailarino e artista, e os níqueis lhe chovem aos pés e os aplausos o acompanham, como moscas. De São Sebastião ao Natal carrega tijolo e mistura a massa e sobe andaimes e arrisca a vida, e contenta-se em rir quando alguém lhe diz que o seu lugar não é ali, mas num palco.

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